Wednesday, September 28, 2016
COMO GOTEJAM
OS SOROS...
(Luz... Porto)
Mal
cochilara, acordara. Jurava ter ouvido um riso e barulho de grades. “As pessoas
não respeitam mais nem os hospitais”. Aliás, como eram horríveis as noites em
hospitais. Ela passara várias. Cuidara do avô, Carlos, ainda bem jovem. Não
havia CTI. Ele, em coma. Grande aflição. Dormira com a avó Irene, com o pai. Tantas vezes com o pai...
Cuidara de uma de suas irmãs também. A solidão dos corredores, ocasionais
passos rápidos, o relógio na parede. Seus ouvidos eram sensíveis e o
tique-taque quase inaudível soava-lhe como tortura chinesa. Outra tortura, o
soro. O gotejar do soro. Era preciso vigiar, acomodar a mão do paciente. Vigiar
e orar. O soro sempre acabava à noite e
não se achava enfermeira para trocá-lo.
De novo o
riso. Alerta, agora, divisou na penumbra sua mãe sentada e rindo, cochichando.
“Mãe? Você tá bem?” “Tô conversando com um menino lindo! Olhos azuis, cabelos
louros, cacheados. Ele corre de um lado para o outro.” “Não tem menino nenhum.”
“Claro que tem! Você não vê? Ele não quer me dizer o nome...” “Você tá vendo
coisas. Cuidado com o soro! Não se mexa muito!” “Quero ir ao banheiro.” “A
enfermeira falou para você fazer na fralda.” “Não consigo. Ora, bolas! Não
parei de usar fraldas antes de um ano para passar esse vexame burra velha! Me
leva já!” “Calma! Preciso pegar o soro.” “Aaaaaaai!” “Machucou?” “O macaco!
Você não viu? Acho que é um gorila. Tenho medo! Tira ele daí, tira! Não gosto
de macacos!” e apertou os olhos, puxando as cobertas para si.
Achou por
bem chamar a enfermeira. Puxou a campainha e... nada! Apertou o botão. Esperou.
Foi até o corredor. Vazio. Posto de enfermagem. Ninguém. “É um pesadelo. Só pode
ser.” Ao voltar viu a mãe com as pernas presas na grade. “Me tira daqui. Isso
não é um hospital. É uma loja maçônica. Eles são contra a Igreja.” “De onde
você tirou isso?” “O homem acabou de subir as escadas e falou bem alto. Fez um
discurso.” “Calma. Vou tentar te tirar daí. Cuidado com o soro...” com muito
custo, os ossos lhe doíam, os ossos da mãe doíam, tirou as pernas da mãe da
grade. A mãe reclamava. Queria ir para a sala, sair da cama, verificar se a
porta estava fechada, rezar junto à Santa Rita. Ela, que presenciara esses
hábitos por mais de quarenta anos já quase esquecera da Santa Rita colada à
porta da frente, presente da tia Cassinha, homônima à Santa. “Use para evitar
que ladrões e o mal entrem em sua casa.”
“Vai acabar
a água...” “Como assim?” “A torneira em cima da televisão está aberta. É muita
água...” Mudando de abordagem, abriu as cortinas, empoeiradas para um hospital,
pegou a escadinha da cama, subiu. “Vou fechar.” “Que bom, minha filha.” “É
aqui?” “Você precisa ver esses óculos. Não tá enxergando nada! Não, né? Mais
pra cima... Isso. Pro lado.” Ficando na ponta dos pés, alcançou a torneira
imaginária e a fechou. “Imagina se seu pai estivesse aqui. Ele teria ataques.
Detesta que falte água”. Ela se lembrou do pai. Nordestino, trazia o medo da
seca em seu DNA. Seca que ele não sofrera de forma direta, mas cuja devastação
presenciara na figura dos retirantes. Aposentado e com a mudança da rota da
CEDAE, ele travara amizade com o “homem da água”. O São Pedro fluminense que
trazia à cintura as chaves das bombas de rua para acioná-las e garantir a
distribuição. Os vizinhos batiam à porta do pai. “Seu Paulo, é hoje que cai
água? Que horas?” Lá ia o pai para a caixa onde ficava a bomba, ao pé da
ladeira. Que aflição ela sentia ao ver o pai, meio gordo, descer a escadinha
mal iluminada e sumir no buraco para ligar a bomba! Seu camarada, o da CEDAE,
mandara fazer uma cópia da chave e o pai evitava assim que os vizinhos ficassem
com as cisternas vazias e que reclamações fossem feitas à empresa. Saudades
desse tempo...
“Ouça, minha
filha. Uma festa! Cada música que tocam... Falta de respeito!” “Onde, mãe?” “Na
casa ao lado. Cruz credo! Música dos infernos!” A mãe se benze, tapa os ouvidos
e balança a cabeça. Súbito, senta-se empertigada, leva a mão direita ao peito e
começa a entoar: “Allons enfants de la Patrie, le jour de Gloire est arrivé”. A
filha canta também. Admira-lhe que com essa idade a mãe se lembrasse da
Marseillaise inteira. “O que foi isso, mãe?” “Ah, chegou um homem importante.
Cantaram um hino e agora ele discursa no palácio.” “palácio?” “Sim. Do Estado
do Rio. Você não vê?” “Tem uma árvore na minha frente, mãe.” “Saia daí. Nossa!
Quanta gente na rua. Acho... acho... A guerra acabou, minha filha! Que alívio!”
“Nem fala, mãe. Amanhã falo com tia Neném e Cocó. Vamos fazer um coq au vin
para celebrar!” “Com tarte tatin? Que bom, mãe!”
“Me leva ao
banheiro?” “Levo.” Equilibrando-se entre amparar a mãe e manter o soro no alto,
acompanhou-a ao banheiro. A mãe sorria, embevecida. “Você não vai me dizer o
seu nome?” “Eu?” “Não, menina! O garoto de olhos azuis trouxe uma garotinha
pela mão. Linda, toda arrumadinha! Os cabelos brilham ao sol...” “Quem é ela?”
“Parece Henriette aos dois anos de idade. Vem dar um beijo na Dindinha. Epa!
Ela não está sozinha. São duas. Gêmeas!” “Vamos voltar pra cama com cuidado,
tá?” Com alguma dificuldade acomoda a mãe ao leito e prende o soro ao suporte
na parede. “Que hospital! A que ponto chegou a saúde no Brasil!”
“Ele está
desenhando.” “O menino?” “Sim.” Fazendo o gesto de quem recebe uma folha,
exclama: “Nossa! Que beleza! Mas... É Friburgo!” Os olhos ficam úmidos.
“Friburgo, mãe?” Mostra o desenho à filha. “Claro! Você não reconhece?” “Estou
sem óculos.” “Pois é. Vocês todas herdaram a minha miopia... Veja bem. É
bastante sofisticado para um menino pequeno. Ele desenhou um lago cercado por
aquelas árvores de Friburgo. Eucaliptos. Aqui tem as montanhas. Parece o Cão
Sentado. Nunca tinha visto por esse ângulo. Papai nos levava para piqueniques.
É lá, eu sei.” A expressão da mãe se modifica. Há um ar de travessura. “Que
houve, mãe?” “Ele mergulhou no lago. Está acenando pra mim.” Levantando os
braços, fez um gesto de mergulho. “Não! O soro! Olha, vamos fazer assim. Lembra
quando você quebrou o braço e nadava com ele pra cima, enrolado em um
plástico?” “Sim. Foi legal. Você tá achando que eu tô gagá? Tenho memória!”
“Então... A brincadeira é assim. Vou amarrar esse braço à sua cintura e você
toma esse pedaço de atadura. Faz o mesmo com o menino. Vocês têm de ver quem
nada melhor amarrado.” Pegando a atadura imaginária a mãe falou “Você só tem
ideia besta. Brincadeira sem graça! Menino, vem cá. Preciso te amarrar. É uma
brincadeira sem graça que minha filha inventou. Como? Não dá pra nadar? Vamos
ver quem boia melhor. Nossa! Como a água está fria!” Encolheu-se na cama e
sorriu. “Friburgo... Já estava esquecendo... Água fria. Agora as nuvens
passaram e o sol brilha a pino. Que lindo! Daqui vejo as árvores, as montanhas.
Posso até fechar os olhos que continuo a ver. Entra aqui, minha filha.” “Não
sei nadar...” “É verdade! Um absurdo eu ter filha que não nada. Duas! Você não
sabe o que está perdendo...”
Passados
alguns longos minutos, talvez meia-hora, a mãe grita. “Volte aqui! Minha filha,
ele está correndo! Me diz seu nome, Espera por mim!” “Vai atrás dele, mamãe.
Não esquece que o braço está preso.” “Ele está entrando por uma porta grande”
“Onde?” “Aqui.” Apontou a parede. “Entra, mãe.” “Que lindo... Meu Deus...” Começou
a chorar. “O que foi agora, mãe?” “É a sala de vovó. A casa de vovó. Estão
todos aqui. Nacele, tia Neném, Cocó, mamãe. É Natal! Tem uma lareira acesa. O
fogo crepita.” “Está frio? Aqui dentro, não. Estou com um vestido de veludo
grená, uma fita nos cabelos, sapatos de verniz e meias brancas. Vovó está viva!
Quero abraçar todo mundo.” “Abraça, mãe.” A filha com a voz embargada imagina a
cena, entre emocionada e aterrorizada com duas possibilidades terríveis:
Alzheimer ou a morte iminente. “O pinheiro de Natal está lindo. Papai o
enfeitou. Sei que foi ele. E o presépio? Tem até moinho com água. Não vejo
papai. Nacele está com um vestido de veludo verde. Combina com os olhos dela.
Os sapatos também são de boneca. Quem é aquela? Ih. É mamãe. Tão elegante. Senta-se
ao piano e toca Chopin. Nem me lembrava mais que ela também tocava...” “O que
ela está tocando?” “A Pollonaise.” Mãe e filha acompanham a melodia com a mão.
“Epa! Ela continua a música. Improvisa. Faz variações. Parece mesmo uma
concertista. Emocionante, minha filha! Todos a aplaudem.” Seca os olhos. A
filha já se esquecera que fora a avó a responsável por buscar a formação
musical da filha mais velha. Único luxo, aliás, que a avó permitira na vida
familiar árdua e difícil que tivera.
“Oba! Hora
da ceia! Tanta coisa gostosa! Fios de ovos! Chuviscos! Lembra dos doces de
Nenga e Cota?” “Inesquecíveis.” “Quer um pedaço?” “Claro!” “Tem peru, frango,
porco, arroz, farofa! De lamber os beiços! Xiii! Vão botar a gente pra
dormir... Não quero!” “Obedeça sua mãe.” Quem sabe assim ela não sossega,
indagava-se a filha exausta. “Ei! Está escuro. Tudo escuro. Só a lareira acesa.
Não! Não acredito! É ele! Papai Noel! Papai Noel, quero um beijo. Vamos atrás
dele, Nacele. Droga! Fugiu. Todo ano é assim!” “E agora?” “As luzes estão
acesas. Vamos abrir os presentes. Não acredito!!!! Ganhei uma casa de bonecas!
Linda! Perfeita! Tem todos os cômodos. Tem móveis. As portas têm maçaneta e
abrem. As janelas também. Meu Deus! Tem descarga no banheiro! Com água!” “O que
Nacele ganhou?” “Um cavalo de madeira. Lindo! Ele balança. Os olhos brilham.
Ei, menino. Volta aqui.” “Ele está na festa?” “Sim. Está me dando uma caixa de
lápis de cera. Estamos desenhando perto da lareira. Me diz seu nome. Queria
tanto que ele dissesse: Jesus, minha filha...” “Pode ser outra criança, mãe.”
“Que maçada! Hora de dormir. Deixa eu ficar mais um pouco, mãe. Ela não
deixa...” “Melhor obedecer” “Ih! Ganhamos pijamas novos! O meu tem um urso. O
de Nacele tem um cachorrinho. Mamãe, quero dormir com a casinha, deixa. Não,
não vou brincar. Só quando acordar. Tem lugar aqui ao pé da cama. Deixa, vai?”
“O que mamãe Irene respondeu?” “Ela desceu e está subindo com os brinquedos.
Tomara que amanhã faça sol. Vou ver meu jardim, cheio de rosas, margaridas, begônias.
Bênção, mãe” “Isso, mamãe. Vê se descansa agora para poder brincar muito.”
A mãe fechou
os olhos sonolenta. “Que noite! Outra dessas eu não aguento!” Ia voltar para o
sofá e descansar o corpo quando ouviu um risinho. “Ele respondeu.” “O menino?”
“Ele se chama Carlinhos...” Enternecida viu a mãe adormecer em sono profundo
com um sorriso angelical nos lábios.
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