Friday, February 21, 2014
OS TRÊS BEM AMARGOS
CIRCE
Luz... Porto
Ulisses e Circe não
faziam planos para o futuro. Nunca fizeram.
Ele ansiava apenas
por retornar à Ítaca de sua infância e à Penélope.
Com o passar do
tempo, Circe começou a desconfiar que tal anseio não era bem verdade: seu Ulisses,
isto é, o Ulisses a quem amava, que almejava a aventura, a viagem; era ele
quem, na verdade, tecia e destecia a mortalha de seu coração de herói.
Mesmo não
conhecendo Penélope, Circe imaginava- a aventureira, ardilosa e dona de seu ‘cão’
viajante. Era dela a mão que segurava a coleira invisível ao redor do pescoço
do herói. E era daquelas coleiras com muita, muita corda, mas que, a um simples
toque, recolhia toda a corda generosamente cedida em um único instante.
E Penélope dava
corda para o herói se enforcar...
A Circe,
consolavam-lhe os porcos em que seus amantes de uma só noite eram
transformados.
Não era bem assim,
na verdade. A feiticeira aproveitava mais de uma noite com eles, até que, já
vazia de insatisfação, mudava-lhes a aparência para não ter de lhes ouvir os
queixumes e as cobranças.
Ulisses foi
poupado, é claro. Não porque fosse melhor amante em termos meramente sexuais.
Ulisses tocou-lhe o coração já empedernido e insuflou-lhe um amor de que ela não se julgava mais capaz.
Além disso, Ulisses
era bom ouvinte. Bom ouvinte e bom falante. Fascinavam-na os bordados que ele
urdia sobre a guerra e sobre sua conturbada volta ao lar.
Circe? Circe não
passava de uma ilha no arquipélago de
Ulisses. Ela sabia disso e como ansiava por transmutar-se em Ítaca... Mas,
feliz ou infelizmente, seus poderes não lhe permitiam transmutar-se a si mesma.
Não enquanto estivesse apaixonada.
Circe apenas se
calava. Por vezes chorava escondida,
pois aquela fraqueza que não deveria habitar-lhe o coração precisava
transbordar.
Ulisses nada
percebia. Ou fingia não perceber. Por vezes a antiga cicatriz em seu joelho
ardia, inflamava. Era Penélope manobrando a coleira.
Com que tristeza Circe
via, por vezes, o olhar perdido do amante a contemplar saudoso o mar. Por ele,
ela seria capaz de abandonar seus domínios e seu poder. De se arriscar em
outras terras, outros mares. Mas ela era excesso de bagagem: ele não a levaria.
Um dia, ela já nem
se lembra quando, ele partiu. Não, ela não acenderia a pira para nela se lançar
em sacrifício como Dido faria. Apenas recolheu-se em seu castelo.
Dizem que se desfez
dos porcos, restituindo-lhes a forma humana ao mesmo tempo em que lhes
apagava a memória e enviou-os de volta
ao continente em grandes barcos. A partir desse momento povoou a ilha com gatos
que lhe faziam companhia e amenizavam-lhe a solidão.
Dizem também que,
ao chegar em Ítaca disfarçado, Ulisses foi bem recebido por Penélope. Quanto à
lenda de que teria vencido os pretendentes ao trono e à sua mulher em uma
competição, parece que a versão é outra. Penélope, reconhecendo logo o
estrangeiro, entortou-lhe o arco e ele não venceu o torneio. Coube a ela a
tarefa de mandar às favas os que a aborreciam com propostas conjugais.
Dizem também que,
após alguns anos, ela teria se cansado do marido fanfarrão e soltara-o da
coleira. Mas um cão não abandona seu dono e ele permaneceu a seu lado, à
soleira da porta, mesmo com a oportunidade de partir.
Dizem que Circe viu
tudo isso acontecer nos olhos translúcidos de um de seus gatos. Seu coração
estremeceu, uma lágrima rolou e uma cicatriz abriu-se em seu joelho.
Mas isso é outra
história...
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