Wednesday, April 16, 2014

SEMENTES DE MAÇÃ
(Luz... Porto)

     Meio-dia. Após um razoável período de trabalho de parto, ela nasce. Nariz perfeito, boca bonita, mas 'lábios grossos'. Puxara à família paterna, diria a avó. Quase careca. Dedos longos da pianista que não viria a ser. Simpática, risonha, rechonchuda. E dentro de si as sementes de maçã que, sem saber, guardaria numa das gavetas do escritório que não teria.
     Sementes de maçã contendo macieiras da Califórnia. Sementes que não semearia. Maçãs em projetos logrados. Logro, logro, lodo, mofo. Era nisso que resultaria aquela vida com projetos de sonho nem tão inocentes assim. Com linhas tão vermelhas a simbolizar a tensão constante que marcaria seus dias. "Tensão produz movimento", diria um dos astrólogos consultados. Mas há certas conjunções, certos arranjos planetários do micro ou do macrocosmos - quem há de saber? - que produzem apenas a estagnação. As linhas da mão tornam-se tão esticadas, mais esticadas que as de um violão ou violino às quais rompesse o mais suave toque de um arco.
     Da estagnação à inércia; da inércia à depressão, leva-se apenas um passo. Aquele tal à beira do abismo. E sementes estagnadas não brotam, não florescem, nem frutificam. Apenas emboloram, ficam ressecadas, encarquilhadas. Sementes-de-maçã-uva-passa. Sementes-de-maçã-maracujá-de-gaveta.
     Seria isso o que as minúsculas e quase imperceptíveis rugas ao redor dos olhos significariam? Que o tempo passara por ela e que ela, Bela Adormecida de Tchaicovskiy, não mergulhara nele, não nadara contra a corrente, apenas sobrevivera, subvivendo? Não se tornara importante, não tivera destaque entre seus pares ou seus ímpares. Não gerara filhos, não haveria de transmitir a ninguém, a quem certamente amaria tanto, "o legado de nossa miséria ". Não escrevera livro algum. Nem ao menos plantara uma árvore. Sequer semeara as sementes de maçã.
     Sim, pois, apesar da dificuldade dos solos, dos solos arenosos, dos barrentos, dos pedregosos, dos cheios de espinho, poderia ter seguido a lição de Cristo e perseverado na semeadura. Bastaria que uma mísera semente caísse em terreno fértil para que tivesse acesso à eternidade, ou, ao menos, a um vislumbre dela. Uma simples macieira, ainda que  desse uma só colheita, um único fruto. Poderia ser o Fruto Proibido do Gênesis, o Pomo da Discórdia de Éris, responsável pela Guerra de Troia, a Maçã no Escuro de Clarice, não importa. Algo seria. Algo cuja memória e presença perpassasse os séculos, costurando-os ou remendando-os.
     Não. Não aprendera nada. Não pusera em prática as parábolas. Quem observasse sua vida medíocre suporia com toda a certeza que nunca lera um sermão sequer de Vieira. Vieira! Os tomos preciosos tomados de empréstimo àquela sacrossanta biblioteca particular... As noites que passara acariciando os livros com encadernação azul-rei, letras douradas, papel precioso. O quanto ela se deliciara com as palavras, as ideias, a verve inflamada!
     Talvez faltassem em seu cérebro os "neurônios-delgados" citados por Jorge Mautner, os tais que, à semelhança do intestino de mesmo nome, seriam responsáveis pela absorção dos nutrientes. No caso, nutrientes cerebrais... Talvez seu cérebro fosse composto por uma só víscera, aquela exaltada por Vinícius em detrimento de outras, como ironizava João Cabral.
     Em sua tempestade cerebral, só conseguiu fazer bem uma coisa: amar. No sentido franciscano. O amor se-lhe esvaía por entre os dedos, pelas lágrimas, pelo suor e sangue. Jorrava de suas palavras impensadas, escorria por seu salário e não havia retorno. O vermelho das linhas de sua carta natal, representadas ciclicamente em sua menstruação longa e abundante, talvez indicasse antes a vida que se-lhe fugia do que a tensão que a mantinha alerta e viva. O vermelho de suas extremidades talvez fosse uma última tentativa de produzir enfim as maçãs, que, largadas em um canto de sua gaveta mais íntima, apodreceram e tiveram degredado o seu DNA singular.
     

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