Monday, February 24, 2014

OS TRÊS BEM AMARGOS
ULISSES
(Luz... Porto)

    Embora filho reconhecido de Laertes e Anticleia, Ulisses sempre sentiu a sombra de seu pai biológico, Sísifo, a rondar-lhe a alma.
     Nascera de uma noite de amor sem amor. Sua mãe fora violada em represália a uma tola disputa por rebanhos, para alegria de seu avô, Autólico, que tanto desejava um neto inteligente e astuto.
     E assim foi. O jovem esguio tornou-se discípulo de Quíron, o Centauro. Aprendeu várias artes, desenvolveu o espírito e sabia-se sucessor ao trono de Ítaca. Pretendia reinar com magnanimidade e sabedoria.
     Mas Quíron não o prevenira contra as armadilha do coração, víscera que ele, racionalmente, julgava tão importante quanto o fígado ou o pâncreas.
     Na hora de escolher uma rainha, dirigiu-se a Esparta em busca da mão da bela Helena. Sua beleza o encantou mas não o seduziu. Sentiu que a sorte não o favoreceria e acabou aconselhando Tíndaro, pai da bela e cobiçadíssima jovem, a exigir de todos os pretendentes um juramento. Os preteridos deveriam respeitar a escolha de Helena e ajudariam o eleito a manter seu casamento caso surgisse algum conflito belicoso que pusesse em risco o enlace.
     Deixando o palácio, uma jovem meio alourada cativou seu coração: Penélope, prima de Helena.
     Facilmente levou-a a Ítaca para fazer dela sua consorte no trono e no leito.
     O filho que tiveram, primeiro de muitos, supunha, revelou-lhe a verdadeira vocação: pai de família.
     Por esta vocação - e por sonhos que ele julgava ter à noite - ele se fingiu de louco e saiu a arar diuturnamente os prados de sua ilha, até que Palamedes, mais esperto, percebeu o estratagema e jogou Telêmaco, filho do rei, em frente ao arado. Ulisses viu-se obrigado a parar e a ceder.
     Não, ele não temia a guerra. Fora educado por Quíron para isso. Nem desejava trair o pacto que ele mesmo sugerira a Tíndaro. Ele apoiaria Menelau. Só não queria se afastar dos braços de Penélope nem afastar Telêmaco dos seus.
     Dez anos se passaram em luta sangrenta e feroz. Cansado, Ulisses não via a hora de dormir novamente ao lado de sua Penélope e de caminhar tranquilamente por sua Ítaca.
     Os deuses assim não quiseram. Esses deuses caprichosos, os mesmos que causaram, inadvertidamente a Guerra dos Dez Anos, não eram capazes de assumir a responsabilidade pela tragédia que desencadearam.
     Cabia aos mortais, aos pobres e desamparados mortais, iluminados pelo fogo de Prometeu, pagar pelo ocorrido. E os deuses souberam cobrar caro.
     A princípio nenhum dos guerreiros deveria voltar ao lar. Não de forma auspiciosa. Palas Atena, contudo, protetora do herói, arranjou uma forma de fazê-lo voltar. Com um preço, contudo: mais dez anos de provações longe do lar.
     E assim, ao sabor das marés e tempestades com que Poseidon lhe açoitava, sofreu nas mãos de Afrodite que o fez se apaixonar por algumas mulheres que cruzaram o seu périplo, muitas vezes mulheres que lhe salvaram a vida. A cada paixão, porém, o herói sentia algo a apertar-lhe, como se uma coleira o cingisse, fazendo-o pensar na esposa..
     Uma, porém, tocou-lhe a víscera adormecida: Circe, a feiticeira. Ele deveria odiá-la. Dizem por aí que ele a repudiava. Não era ela o tipo de mulher que ele escolheria para amar, em absoluto, mas foi com ela que passou mais tempo e foi com ela que viveu seus momentos de amor mais intensos.
     Agradavam-lhe as histórias da feiticeira, sua verve. Sentia-se lisonjeado pelo modo como ela lhe ouvia as aventuras, com a boca levemente entreaberta, o nariz um pouco franzido e os olhos escuros bem atentos.
     Ulisses, tão senhor de si, sentia-se desconcertado ao lado de Circe, que nunca interrompia seus momentos de solidão e que era capaz de ficar horas em silêncio ao lado do amante.
     Mas o pai de família falava mais alto e a cicatriz no joelho ardia, abria de novo e pulsava.
     Deveria voltar ao lar, ao seu lar.
     Circe não disse nada, não pediu nada. Empalideceu, encurvou-se, imperceptivelmente, sobre o ventre, como se tivesse sido apunhalada.
     E Ulisses voltou à sua Pátria.
     Não esperava que um dia a sua Penélope, a doce e inocente Penélope, viesse a se cansar dele.
     Quando a coleira foi aberta, ficou desnorteado, não sabia para onde ir.
     Ulisses, o "homem à procura de si mesmo", percebeu que gastara vinte anos da sua vida para voltar ao ponto de partida, sem nenhuma chance de recomeço.
     


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