Monday, October 17, 2016
MÃE E FILHA
(Luz... Porto)
Esta poderia ser a pequena Norma, se, em 1925
ou 1926, as mães vestissem assim suas filhas ou se o clima de Friburgo, ainda
que no verão, permitisse a pouca vestimenta. A beleza de foto foi pescada em
algum lugar. Não faço ideia de onde. Ela foi pescada, provavelmente no pior Dia
das Crianças de minha vida. Sempre gostei do Dia das Crianças. Doces,
presentes, bagunças, até que o Papa João Paulo II oficializasse a data como o Dia
da Padroeira do Brasil. Feriado que se juntava, às vezes com o Dia dos Professores
. Uma burra velha dessas acostumou-se a celebrar o dia na família, depois na
escola, e, por último, sempre usava aquela conversa mole de caçula para
conseguir o que queria: um LP! Felizmente, namorados houve que aceitavam a
tradição.
Este ano de 2016 foi muito diferente. Mamãe,
recém-saída do CTI, não me reconheceu. Que decepção! De mãos dadas comigo,
prescrutava-me com o olhar inquisidor. Não obstante, algo aconteceu. Naquele
quarto de hospital, nos olhávamos, suspensas no tempo e no espaço. Não, mamãe
não falou comigo. Não estava falando. Não me cheirou, como um bicho à sua cria.
Nossas almas estavam em sintonia e se reconheciam. Não pela forma, mas pela
essência. Naquele momento de reencontro, eu era a mãe, sorridente, e ela, o
bebê recém-nascido, desconfiado. Que chorava para alargar os pulmões. E como
precisava alargá-los... Não tive vontade de me afastar dela. Seria tudo
novidade. Comer, beber água... Canudo? Um luxo! Ela mal tinha fôlego de chupar.
Era na seringa mesmo. Que ela sugava como um filhote. Cercavam-nos músicas,
melodias e canções de outra época. Música das esferas. Mãe e filha se
alternando. Os vínculos permanecem. A energia também.
A “ausência” de mamãe nesse plano, a falta de
conexão, permitia que ela vagasse em outra dimensão. À qual eu tinha acesso, de
alguma forma. Naquele momento de beleza, oscilei entre a dor da partida, que
sentia cada vez mais iminente, e a felicidade de um renascimento; a fé de que
em uma existência paralela, ela estaria curada, leve, solta. Eu, presa neste
corpo, insistia na comunicação física. Tola... Não somos corpos que têm um
espírito. Somos espíritos que têm um corpo. Transitório.
Como acredito em sincronicidades, não em
meras coincidências, na véspera, passando pela rua, muito cansada, sou surpreendida
por um conjunto de músicos. Da Orquestra da Grota. Um teclado, um violoncelo e
dois violinos. Não me lembro das melodias tocadas. Senti-me impelida a parar,
por cerca de meia-hora, e a ouvir o que executavam. As notas penetravam em meu
corpo exausto e as lágrimas escorriam. Canções que mamãe tocara, outras de que
ela gostava e, pasmem! MY WAY! Ninguém que conheça mamãe poderá associar um dos
grandes sucessos de Sinatra a ela. Eu o fiz. Mamãe fora a filha obediente, a
mulher que obedecia, em parte, ao marido. Na esquina em que me encontrava, um
anjo travesso, desses que a visitaram em um dos chamados “delírios”, me sorriu
maroto e cochichou: “Preste atenção à letra”. Fui me lembrando de pedaços e
cheguei à conclusão de que muitas coisas ela fizera “her way”, ou seja, à sua
moda. Alguém que decide nadar aos 55 anos e nadou muito, praticamente todos os
dias, por mais de 30 anos, indo até uma ilha não tão próxima assim, que, mesmo “atropelada”
por um barco a remo, não abriu mão de sua praia, há de ter sua teimosia e
persistência. Alguém que decidiu caminhar novamente por Niterói, e andava do
Gragoatá até São Francisco, via Estrada Fróes, “abocanhou mais do que
conseguia” e terminou sendo proibida de suas andanças pelo cardiologista.
Pena... Ela era feliz assim.
Pois tudo isso estava presente em meu coração
naquele encontro inesperado. Ela não tirava os olhos de mim, nem eu os meus de
seus olhos de gato, de cor indefinida, a que eu sempre chamei de amarelos. As
mãos, tampouco, se separaram, e, suponho, tenha lhe contado dos músicos de rua
e transmitido as peças tocadas, mas não com a voz. Com aquela comunicação única
e solitária que existe entre a mãe e o seu filho, primeiro dentro da barriga,
e, depois, fora, antes que o bebê comece a se inteirar com o ambiente e com outras
pessoas.
Talvez fôssemos anêmonas vagando pelo líquido
amniótico, cavalos marinhos, estrelas-do-mar, ou criaturas primitivas na aurora
dos tempos. A tristeza de não ser reconhecida foi substituída por essa
experiência quase lisérgica e intransferível. Os que estavam à volta não a
perceberam. Acreditavam que mamãe estivesse se comunicando nesse plano pelo
simples fato de ela repetir a última palavra do que lhe era perguntado. Não
perceberam a dificuldade e o sofrimento de estar buscando palavras que
expressassem um determinado sentido ou buscando um sentido para o que ouvia.
Seguimos assim, por um bom tempo, não medido
pelo relógio, nem por colherinhas de açúcar, à moda de T.S. Eliot. Ela me
perguntava, como o protagonista de The Love Song of J. Alfred Prufrock, “Do I
dare?”, isto é, “Como ousar?” Tentei lhe dizer que ela estava livre para ousar,
para voar, se libertar e buscar uma nova vida. A que ela considera eterna e que
outros consideram apenas mais uma no estágio de evolução e aprimoramento do
espírito. Permanecemos nas mansões do mar em abandono e entrega mirando a nós,
duas ondinas com grinaldas de algas bem verdes, até que vozes demasiadamente
humanas nos despertaram e naufragamos*.
*A última frase é uma tradução e adaptação (mal) feitas de THE LOVE SONG OF J. ALFRED PRUFROCK, de T. S. Eliot. Usei-a por expressar o que eu estava sentindo.
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