Friday, August 15, 2014


FADO


(Luz... Porto)

     "Vivia a te buscar porque/ Pensando em ti/Corria contra o tempo..." Ao som desses versos, que só seriam compostos três ou quatro anos depois, ela adormecia. Não era triste nem alegre. Tampouco era poeta, embora a poesia a habitasse. Era só mais uma na multidão.
Esperava por um príncipe? Não. Já tivera o seu, pensava, com a arrogância dos vinte, vinte e poucos anos. Um príncipe que não servira para muita coisa. E, às vezes, buscava por algum, de tez morena, nariz bem feito e inteligente, em meio à multidão de colegas de faculdade, em meio àqueles que, todos os dias, ou quase, atravessavam a baía de barca.
     Um dia, sentada no ônibus, prestes a partir, ela o viu. Olhou para ele e sabia que o conhecia de longa data. Até o nome pronunciou. Aí, as versões variam. Aparentemente ela se apresentou e fizeram o percurso conversando. Se era doida? Tudo indica que sim. Soubera de um rapaz encantador e não tão tímido assim. Segundo a irmã, haveriam de se dar bem. Eram parecidos. Por isso não lhe pareceu insensato ou descabido conversar com ele.
     A vida seguiu, como sempre segue. Envolveu-se com outros rapazes. Teve outros projetos de trabalho. Foi servidora pública. Mudança dramática. Para espanto de todos, largou tudo. Dedicou-se a uma carreira solo que ia bem. Investia em livros, leitura, cinema, teatro e shows. Cultura. Voltando, carregada com o Ramo de Ouro e a História das Religiões, esbarram-se novamente. Decidem fazer um lanche. Vão a uma saladeria. Conversam mais. Ele fala da mãe, essa figura etérea, mas de pulso. Ele a convida para uma peça. Ela hesita. Acaba indo com uma amiga.
     Muitas luas novas se passam. Ela não pensa nele. Ele não pensa nela. Abandonando um pouco o voo solo, ela se emprega em uma grande firma. Retoma os estudos. Conhece gente nova. Ela sempre conhecia gente nova. Tinha muitos amigos.
     Visitada por um enorme pássaro, ao som da Ópera Carmen, ela se vê duplicada em um castelo com uma enorme escadaria. Trajava uma ousava camisola e um negligé pretos. A outra também. Há um embate, as duas lutam e uma se espatifa no hall de mármore. Acorda assustada com o sonho, que mal compreende. Nem sabe qual das duas sobrevivera. Ela ou seu doppleganger.
     À noite, para desanuviar, decide convidar um dos amigos para jantar em sua casa. "Tadinho! Come sempre no bandejão", dizia-lhe o molengo coração. O amigo não estava. Voltando para casa, revê o Quase Esquecido, o Pouco Lembrado. Está mais bonito. Corado, com uma camisa de um azul vivo. Engatam em uma conversa sem fim sobre poesia. E os poetas preferidos. Dos dois. Entre ir a um bar temático em Ipanema ou a uma peça em um teatro da cidade, optou-se por esta última.
     Despediram-se amigavelmente. Então ela, leitora assídua de Malba Tahan, se deu conta de que, para os árabes islâmicos, quando uma pessoa, assim do nada, cruza o nosso caminho três vezes, isso é um sinal de Alah. Sinal de que esta pessoa fará parte da nossa vida. Para o bem ou para o mal. Sinal de que estes caminhos estão entrelaçados.
     No domingo, toma um banho pensativa. Arruma-se, maquia-se e se penteia como uma Vestal encaminhando-se ao Templo. Não sabia o que esperava por ela. Mas segue resoluta, cabeça erguida. Há que se cumprir o destino. Seja à custa de sangue e lágrimas, seja à custa de risos e levezas. Ou de trabalho duro. Não importa. Ela apenas fecha a porta atrás de si, entra no carro com seu mais belo sorriso. E vai...

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