E ele acabava melhorando. Ele, o pai incansável, o marido dedicado, o vizinho prestativo, o genro de ouro, o "sobrinho" que minhas tias-avós admiravam, o irmão com quem se podia contar, o filho "queridinho" da minha avó (há controvérsias. Mas suspeito que fosse). Ele era a boa vontade em pessoa.
Não digo isto por ser filha dele, não. Ele era conhecido no comércio, nas redondezas. Tinha o hábito, que eu mantenho, de ter fidelidade aos comerciantes. Comprava na mesma farmácia, na mesma mercearia, no mesmo jornaleiro, no mesmo açougue. Havia açougues naquele tempo! E tinha 'conta' nos lugares mais próximos de casa para necessidades. E como elas surgiam! Era muito boa a sensação de se ir à farmácia e ser reconhecida como "filha do Seu Paulo, do 15". O crédito se abria para mim.
Honesto, honestíssimo, chato de tão honesto. Era um homem de palavra. De poucas palavras, mas a caçula as arrancava a fórceps ou talvez por uma sede de passado que ele podia saciar. Após o jantar, o jornal, ia ele para o quarto, descansar ouvindo rádio. E eu atrás. Aí ele me contava muitas histórias. Como era a casa em que ele nasceu, como era ter tido vinte e um irmãos, ainda que só dez tenham sobrevivido. O que comiam, como se fazia com a carne, como era viver sem geladeira. Havia papel higiênico? E pera, no Nordeste tinha pera?
Assim eu ia criando a casa que, vinte e oito anos depois eu viria a visitar. Imaginando meus avós paternos que não conheci. Cavando um São Francisco que irrompia pelo chão seco. Desenhando o mestre-escola que dava aulas a crianças de várias séries numa mesma sala de aula. E que usava a palmatória... Caminhando pelas ruas sem asfalto por onde passavam carroças e muita gente a cavalo, inclusive meu pai.
Confesso que tinha medo de ficar órfã. Havia uma música infame que meu pai ouvia no rádio. Teixeirinha, talvez? O cantor falava de um dos pais que se fora. Eu não queria ficar órfã de jeito nenhum. E, confesso, tinha muita dificuldade em imaginar a vida sem meu pai. Não fazia, para mim, o menor sentido.
Quando ele teve câncer de próstata, não me contaram. Nem a mim, nem a ele. Ele não teria suportado saber da doença, eu suponho. Eu também não. Perguntava muitas vezes e minha mãe, minhas irmãs, meu tio, me garantiam que não era câncer. Como ele sofreu. O tumor impedia a passagem da urina. Ele ficava alucinado de dor.
Internou-se várias vezes. No final, já em enfermaria. Eu odiava a enfermaria. Não podia ficar com ele o tempo que eu quisesse. Em uma, meu pai presenciou a morte de um velhinho e ficou muito abalado. Transferido, foi para uma outra cuja janela dava para a rua. Era ótimo. Ele ficava em pé, me esperando, umas quinze pras sete, hora em que eu ia para o ponto esperar o ônibus. A gente ficava acenando uns cinco minutos, eu com o coração apertado.
Teve alta. Passei a frequentar vários grupos de oração, nem todos católicos. Pedia para todos rezarem por ele. Minha mãe também. Havia grupos que rezavam em uma mesma hora. E eu, sozinha no meu quarto, rezando, pedindo a Deus que devolvesse o meu pai que ainda não tinha ido. E ele não foi. O tumor desapareceu, sabe-se lá como. E meu pai foi prorrogado em vinte e dois anos.
Não sei exatamente o que ele via em mim. Afinal, eu não era tão parecida com ele assim, mas, certamente, havia uma afinidade de almas. Nós nos dávamos muito bem, especialmente quando não estava a família inteira com seu burburinho à nossa volta. Quase morri de culpa quando, aos quinze anos, demorei-me na rua para assistir a um desfile de modas em uma das galerias de Icaraí. Cheguei em casa um pouco depois das dez e meu pai estava desesperado. Até meu tio José ele havia convocado. A partir daí criei e cultivei o hábito de ligar sempre para ele (não havia celular) e avisar sobre mudanças de planos. A cada viagem que eu fazia, ligava uma vez por dia para dar notícias. E matar a saudade.
Acusavam-me de ser "mimada", "estragada" por ele. Não sei. Sei que ele cuidou de mim. Como uma mãe cuidaria. Minha mãe não estava bem de saúde na minha infância e ele fazia '"coisas de mãe". Sempre fui muito sensível e era dada a vômitos e intoxicações. A mão que segurava a minha testa ao vomitar era a dele. Ele preparava remédios para mim. Quando precisava tomar antibiótico, ele preparava o Nescau e, na hora certa, me acordava. Bebia o leite, tomava o remédio e voltava a dormir. Era ele quem me acordava para a escola. Eu odeio ser acordada até hoje. Mas com ele era bem melhor. Até burra velha, já noiva, estando dormindo fora de casa, ele pegava o telefone e me acordava. Podia outra pessoa atender. Eu só acordava quando ele dizia: "Luzia (ou minha filha), são sete (sete e meia, seis, oito) horas. Você não pediu para eu te acordar?"
Mas esse pai que me chamava de Luzia Teresa ou de Luzia Tê, e um dos poucos a quem eu concedia a intimidade de me chamar de Lu, me educou em muitos sentidos. Ensinou-me a generosidade, a responsabilidade, o amor pelo trabalho. E a tal da 'boa vontade'. Não sei se fui boa aluna. Mas tive o melhor mestre que alguém poderia ter.
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