Friday, August 15, 2014


O ANEL QUE TU ME DESTE


(Luz... Porto)

     Em criança saía à rua com meu pai. A memória me trai, mas sou capaz de jurar que ele comprara uma pulseira e um anel de ouro com meu nome gravado só para assinar a obra que produzira. Mãos pequenas, dedos estreitos, o espaço era pouco para os meus prenomes. Meu pai mandara então gravar a forma como ele me tratava: Luzia Teresa. Eu me sentia orgulhosa, aquele cotoquinho de gente junto a um pai que eu julgava enorme. De fato, meu pai tinha a constituição grande, embora não fosse tão alto assim.
     Um dia perguntaram se ele era meu avô e eu morri de vergonha. Não sei a razão. Nunca tive problemas com ou rejeição a velhos, agora chamados de idosos. Só sei que deixei de curtir sair com ele do jeito que eu curtia. Só sei que fiquei sem jeito.
     Os anos se passaram. Alguns. Já estava na escola e a professora perguntou a profissão do pai. Não sabia. Ele trabalhava na ATLANTIC. Muito. Levava serviço para casa. Fazia contas enormes. A mão. Viajava pelo Brasil. Sudeste e Nordeste. Ele respondeu "comerciário". Não fez sentido. Ele não vendia gasolina...
     Na mesma época, uma de minhas irmãs me revelou, para meu espanto, que meu pai não era formado. "Como não?" Minha mãe, dona de casa, era; minhas irmãs todas faziam faculdade. Meu pai cursara só o primário. Até a quarta série. E eu já estava quase lá! Não tive coragem de confirmar a história com ele. Poderia magoá-lo. Se ele só tivesse estudado esse tanto, saberia tão pouco, eu pensava.
     Uns anos depois veio a surpresa. Conversando com ele, coisa que fazia noite sim, noite não, o assunto mudou de 'como era a sua vida e como eram as coisas no nordeste' para a coleção de mitologia greco-romana que ele fizera para mim. Ele começou a falar de Ulisses. Conhecia a Odisseia. E a Ilíada. E os Trabalhos de Hércules. E conhecia tantas outras coisas ditas "eruditas". Conhecia a história da Atlântida. Sabia de algumas versões. Conhecia geografia. E histórias dos quatro cantos do mundo. E falou de política. Dos presidentes do Brasil. Da dívida externa. Dos perigos de uma ditadura. Do seu horror ao fascismo e ao comunismo. Do seu repúdio ao "Golpe Militar." Fui dormir aturdida. "Enganaram-me", pensei. "Meu pai é um homem culto."
     Vim a entender que no início do século XX, estudo era sim "coisa de rico". Sobretudo para quem morava no interior. E no interior do Nordeste. Dos vários filhos que meu avô paterno teve, só um ele mandou para estudar na capital. Ginásio, secundário, faculdade. A meu pai coube a labuta. Ajudar meu avô no trabalho com a fazenda (fazenda. Não latifúndio). Ser seu braço direito. Acordar às três, três e meia e dar duro até o sol se por. Até, por motivos nunca revelados, que apenas intuo, largar tudo e vir para o "sul", o Rio de Janeiro. Cidade onde foi porteiro de cinema, até ser promovido a gerente; frentista da ATLANTIC, até começar a fazer serviço "de escritório". Trabalhou com várias coisas, chegando à contabilidade e, pasmem, à auditoria. Por isso tantas viagens.
     As coleções, as enciclopédias, os dicionários, que enchiam as estantes lá de casa começaram a fazer sentido. Meu pai foi um autodidata. Muita coisa aprendeu na escola, aquela escola em que havia um único professor para todas as classes, todas as séries. Esse mestre-escola, respeitado que era, transmitia o que podia e o que não podia àquelas crianças. Muitas ficavam só com aquilo. Outras não. Buscavam conhecimento com o que lhes caía à mão.
     As coleções que povoavam as estantes da minha casa eram as mesmas que os outros tios tinham. As mesmas que vi na casa dos avós paternos quando por lá estive. Tesouro da Juventude, Enciclopédia Jackson, Manual de Contabilidade, Lello Universal, Guia Médico da Família e a Barsa. Essa, aquisição bem mais recente.
     O anel e a pulseira com meu nome não cabem mais em mim há tempos. A pulseira se perdeu. Acho que arrebentou. O anel diminuto, trago-o comigo até hoje. Se nele estão incrustados dois de meus prenomes, no verso pode-se ler PAULO B. PORTO. E é com orgulho, gratidão e carinho que ainda o chamo como sempre chamei: "meu pai"...

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