Wednesday, August 27, 2014

TEMPO DA DELICADEZA
(Luz... Porto)


     Chegara em casa cansada. Como sempre. Um serviço entediante e cansativo. Mais cansaço agora com a venda da casa da mãe. Era iminente que ela retirasse de lá o que ainda lhe pertencia. Doar, jogar fora, ver o que podia reaproveitar. Fazer, enfim, uma triagem. Coisa que deveria também fazer em sua vida. Os livros, discos, que ficaram por lá já tinham sido devidamente encaixotados. Um resto de roupa e sapatos também fora doado. Olhou, com pena e saudade, para os móveis que seu pai mandara fazer para o quarto. Foram necessários mais de vinte anos para que o pai pudesse montar o quarto dela. Não poderia aproveitar nada. Cupim. 
      Contempla a estante com carinho e se dá conta de que não havia resolvido o que faria do seu som SONY. O primeiro que ela comprara com seu dinheiro. Um espetáculo na época. CD player, duplo deck, rádio AM/FM e controle remoto. Mas ele quebrara. O tempo não perdoa. As coisas e as pessoas se gastam. Ofereceu-o às empregadas. Nenhuma o quis. Ofereceu-o às acompanhantes. Recusaram. Tinham coisa melhor em casa. Mas a faxineira, antes que ela oferecesse, prontificou-se:" Lá perto de casa tem um rapaz que conserta. Quer que eu veja o preço?" E a faxineira o levou
     Na semana seguinte volta a faxineira falante, agradecendo o presente. Tocava que era uma beleza. E completa;"Olha o moço mandou devolver essas fitas. Ele disse que você tem bom gosto." "Fitas? Que fitas?" Percebeu então que tinha deixado dois cassetes no aparelho. Há tanto tempo que nem se lembrava mais delas. O rótulo , apagado, não lhe permitia ter pistas. Como, apesar do progresso, dos Cds, dos MP3s, era conservadora, tinha vitrola e toca-fitas em casa. Pegou uma delas ao acaso e apertou o play.
     Uma Verônica Sabino cantando:"Prometo te querer até o amor cair doente, doente... Depois de te perder te encontro com certeza, talvez no tempo da delicadeza..." surpreendeu-a. "Não lembro de ter ouvido a Verônica cantando essa música. Estranho..."  Depois veio um Chico em uma gravação antiga de Morena dos Olhos d'Água. Foi a gota que faltava. Lembrou-se do dia em que recebera a fita junto a um projeto que ela adoraria ter produzido. Projeto com dedicatória. Coisa de um ex-namorado, cineasta. Coisa de décadas atrás. Ela se lembrou de ter perguntado a ele a razão do Morena dos Olhos d'Água. Ela não os tinha verdes ou azuis. Ele rira e respondera.:"Como você não sabe? São olhos d'água porque ela está chorando". E tudo fez sentido.
      Sentido provisório. Só a música fez sentido. A tão sonhada volta subentendida pela fita e pelo projeto não deu em nada. Alguns momentos agradáveis, é claro. Uma promessa de felicidade. Ela o amava. Mas talvez a carreira dele, as companhias que ele tanto prezava... Pessoas famosas, conhecidas... Talvez ele a preterisse em função destas. Lembrou-se de inúmeros desencontros, de compromissos cancelados na última hora, de bolos. Não havia celular na época. Uma vez ele ligou de um bar- ela pode ouvir as pessoas falando - para pedir-lhe uma informação. E ela, em casa, esperando por ele para irem a um show. Ingressos já comprados. Foi sozinha.
       Embora atuasse no ramo artístico, era produtora, não era exatamente produtora de filmes. Nem tinha esse cacife todo. Talvez o fato de não ser notória o tivesse levado a preferir outras opiniões, outros conselhos. E de bolo em bolo, de saídas canceladas em cima de saídas canceladas, ela sentiu-se sobrando na vida dele. E sobrava. Preferiu ficar só. Tá, não ficou só por tanto tempo, mas não era a mesma coisa. Soube que ele tinha viajado, sido premiado no exterior. Depois, falta total de notícias.
      Agora quando ela se sentia tão cansada, olhava para trás e via sonhos não concretizados. Ficara no meio do caminho. A recessão, o Plano Collor, tudo isso quebrou várias pequenas empresas. Ela não conseguiu se manter e fechou a firma. Teve de se submeter a um concurso público. Trabalho burocrático que a entediava profundamente, tirando-lhe a alegria de criar. Tornara-se uma 'batedora de pregos', como seu namorado de infância costumava designar tais funções. Contava os dias para a aposentadoria, como um preso marca na parde da cela os dias de pena cumprida.
      E o tempo da delicadeza? Promessa vã de primavera. Flor prestes a desabrochar que um passarinho desavisado vem e bica. Não vingou. Só lhe restara, afinal, o tempo da aspereza...

     

1 Comments:

Blogger Renata Guidinha said...

Estava procurando notícias sobre uma pessoa amiga de minha família aqui na net e encontrei o seu blog... Li coisas que me encantaram... Fiquei por aqui. Nem sei se há espaço para isso, vire seguidora.
Um abraço

05 September, 2014 16:59  

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