Monday, September 28, 2015

MAIS UM SONETO


(Luz... Porto)




Era dele a única fotografia na parede. Isto é, a única que importava. E como doía... Para disfarçar, fizera algo que aprendera em um dos contos do Father Brown, de G. K. Chesterton. Escondera-a em meio a mais de uma dezena de retratos na parede da sala íntima. Acrescentara pessoas importantes que, para ela, não significavam nada. Algumas pessoas cujo nome ela chegava a ignorar. Não, a fotografia nunca fora descoberta. Nem pelo marido, nem pelos filhos, nem pelos amigos.
Ele também guardara a mesma foto. Como não podia mostrar, queimara-a sem que lhe escorresse uma lágrima pelo rosto. Mas as cinzas se colaram ao inconsciente e assombravam-lhe os sonhos. Dos quais, jurava, jamais se recordava. Por vezes acordava assustado. Por outras, mal humorado. Em algumas ocasiões, nostálgico. Um retrato queimado não haveria de doer. Que tolo!
Ela aprendera a conviver com a dor, úlcera que teimava em abrir nos momentos mais desconcertantes. Valia-se de sucos alcalinizantes e de sucos detox. De meditação, yoga, amantes. Era voluntária em uma casa para idosos e isso lhe tomava tempo e amor.
Ele ignorava a dor. Enterrara-a, queimara-a. Abandonara a dor no dia em que a abandonou de forma covarde. Desenvolvera uma gastrite que virou úlcera. Volta e meia sangrava e chegou a se operar. Seguia uma dieta severa. Apesar de simpático, bem humorado, uma aura de amargor passou a cercá-lo.
Depois de um tempo, ela se recuperou. Conseguiu perder peso, a pele ganhou novo viço. Corrigiu umas imperfeições da idade. Quando sonhava com ele, gravava ou escrevia. E rezava um Pai-Nosso e a Prece de Cáritas. Fez o que nunca tivera coragem. Saltou de parapente, escondida da família. Sentiu-se livre como uma águia.
Com o tempo, a visão foi se turvando e ele se sentia inseguro. A artrose foi pesando. As cãs foram tomando seus cabelos. Surgiu uma barriguinha de chopp, que nunca tivera. Experimentou umas garotinhas. Carne nova, pele lisa, frescor da juventude. A esposa soube e ele se retraiu. Percebeu-se preso em uma teia que ajudara a tecer.
As fotografias, externa e interna, nunca deixaram de pulsar, marcadas a ferro.
Em outra encarnação...
Quem sabe?

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