Monday, October 12, 2015
NEVERLAND NEVER MORE
(Luzia Porto)
Banhada em suor, Sininho tentava se manter acordada. Não,
não teria como ela se salvar. Fada que fosse, o veneno que ingerira provinha de
outra criatura mágica, mais poderosa do que ela. Só lhe restava aguardar o fim. O ventre se
expandira, deformando a cinturinha fina e delicada de que sempre se orgulhou. No
vidro da lamparina onde via refletia uma criatura disforme, com olhos
embaciados, cercados por olheiras enormes, o vapor se condensava. Envelhecera
naqueles minutos. Peter custara muito a resgatá-la e, com um cuidado que a
surpreendera, acomodara-a na sua caminha.
Nessa eternidade de minutos, pusera-se a fazer um balanço de
sua vida. Parecia-lhe cheia de enganos. Ela poderia ter se tornado uma fada de
primeira grandeza. Para o bem ou para o mal, como a Malévola, a Madrasta, a
Fada Azul, a Fada Madrinha. Mas, em seu aprendizado, no contato com os humanos,
raça muito complicada, encantara-se pelo Peter. Não saberia dizer, com certeza,
se o bebê estava realmente abandonado ou se a babá ou a mãe o teriam largado
alguns instantes para cuidar, por exemplo, de um irmão que tivesse se afastado.
Talvez Sininho se precipitasse ao acolher aquele bebê de bochechas rosadas,
olhos sérios e cabelo castanho, tomando-o a seus cuidados. Em seu estágio de
evolução, Sininho só podia se valer do pó de Pirlimpimpim como mágica. Além
disso, descobrira um reino onde poderia ser fada: Neverland. Foi o que fez. Com
a ajuda do pó, levou o bebê para lá.
Neverland era uma terra com leis próprias e ela não tinha o
poder de alterá-las. Uma das leis, era o tempo. O Tempo congelara-se lá, mas de
forma variada. Alguns personagens poderiam crescer até uma certa idade. O
Capitão Gancho não passaria dos quarenta, Barrica, dos sessenta e cinco, Raio
de Sol, a filha do cacique, seria eternizada aos nove. As sereias... as sereias
eram por si eternas e os séculos que traziam consigo jamais lhes dariam uma
aparência de mais idade que a de jovens adolescentes de quinze, dezessete anos.
Mais uma facada. Seu tempo se esgotava. Sininho sentia que
estavam-na rasgando por dentro. Seria um parto de alguém que nunca gerara nem
geraria filhos. Daria o quê à luz? Talvez sua própria morte... Estaria
delirando? Contorcia-se em dores lancinantes e sua vida teimava em passar-lhe
na memória como um filme.
Sininho trouxera Peter e o escondera. Aprendera a cuidar
dele, mas objetos como fraldas, mamadeiras, eram difíceis de serem manuseados.
Pedira ajuda aos índios. Reticentes a princípio, resolveram ajudá-la. E Peter
cresceu entre índios, sereias e a fada. Sua fada madrinha. Sua eterna
protetora. Nesse meio tempo, a Rainha das Fadas esteve em Neverland, criticou-a
por ter interferido no mundo dos mortais sem ter a necessária formação em
Magia. Negou a Sininho o salvo-conduto para outros reinos já existentes.
Sininho chorou. Não fizera por mal. A Rainha entendia a fadinha e deixou-lhe
com seus poderes: poder voar e poder fabricar, de suas entranhas, o pó de Pirlimpimpim,
aquele que faria humanos e seres não alados voarem.
Peter cresceu, teve as orelhas modificadas por Elfos com os
quais brincava, aprendeu pequenos truques de mágica com os Gnomos. Caçava,
pescava e nadada como ninguém. Aos quatorze anos, seu tempo parou. Conheceu o
Capitão Gancho com quem travou tremenda batalha. Conhecedor da língua de vários
animais, convocou o crocodilo que, antes que o pirata matasse o menino,
abocanhou-lhe uma das mãos.
O fato de ter visto a morte assim de perto tornou Peter
melancólico. Ele pediu à fada que lhe contasse sua história, embora nunca tivesse
se interessado em aprender direito o fadês. Ela contou um relato à sua moda. Omitiu
a dúvida de que tivesse sido verdadeiramente negligenciado. Peter
acreditou. Sentiu-se só e implorou à
amiga que o levasse de volta à sua terra.
Começou então o suplício de Sininho. Só ela podia transitar
entre os dois mundos e ela o fazia com esforço, por amor ao menino. A cada vez
que iam, Peter “descobria” um bebê, um menino “abandonado”. E ele era levado a
Neverland. Sininho ensinava Peter a cuidar deles. Foram “resgatados” sete
meninos que chegavam à idade de sete, oito e nove anos. Peter era o herói, o
líder deles. E se esquecia de Sininho. Ela só era lembrada nos embates contra o
pirata. Poderiam precisar do pó para evitar a prancha.
Um dia, algo de estranho aconteceu. A sombra de Peter quis
fugir dele. Ele, tão controlador, já não a controlava. Tentaram de tudo,
consultaram todos no Reino. Foi então que um, assim dos chamados “meninos
perdidos”, o herói nem se dava ao trabalho de nomeá-los, lembrou-se de uma
figura materna que zelava por ele, que cerzia, cantava, embalava, costurava,
alimentava. Ela haveria de saber o que fazer.
Voltaram à civilização onde encontraram uma menina chamada
Wendy. Contrariando as expectativas da fada, Wendy, era esse o nome, não se
assustou e coseu a sombra a Peter com agulha e linha. Encantado, Peter quis leva-lo
consigo. Assim o fez. Agora, além de ter
seu protegido dividido entre os “meninos perdidos”, ela também o dividiria com
a Wendy. Wendy representava para Peter tudo o que a fadinha fora. A fada só não
falava o idioma, nem costurava ou cozinhava. Mas providenciara tudo para aquele
que se tornara sua razão de viver.
Peter deixou de notá-la. Não lhe dava mais o costumeiro
boa-noite. Ela tornara-se uma mera fornecedora do pó mágico. Talvez por estar
imersa na tristeza, tenha enfraquecido, se tornado mais vulnerável e tenha
demorado a perceber que a deliciosa torta de amoras selvagens – a preferida do
Peter – fosse uma armadilha de Gancho. Tentou avisar, mas ele não a ouvia. Foi
preciso jogar a torta fora, mas o rapaz já estava levando um bocado dela à
boca. Sininho voou ligeira e comeu o que se destinava a ele. Peter zangou-se
com ela e foi Wendy quem percebeu que ela estava mal.
As dores aumentavam, começara a tremer como se ardesse em
febre. Para aumentar-lhe o tormento, viu um Peter diferente do seu bebê: uma
criatura egoísta, vaidosa, incapaz de pensar nos outros. Wendy? Wendy fora
trazida para ser uma mãe de aluguel e uma empregada. Perguntou-se o porquê da
fixação de Peter nos meninos... Ele nunca resgatara UMA só menina que fosse! Pensamentos
sombrios lhe toldaram o semblante já marcado e uma adaga penetrou-lhe o
coração. Criara um monstro, tinha certeza. Um ser sem alma. Perverso! Em mais
de um sentido. Quem sabe um psicopata...
Quando sentiu vir seu
último suspiro, palmas vindas de todo o mundo ensurdeceram-lhe. Junto a elas
uma declaração: ”Eu acredito em fadas!”, pronunciada em diversos idiomas. Antes
de desmaiar viu o rosto de um Peter sorridente. Despertou e viu que lhe
organizaram uma festa. Música, comida, flores. Todos comemoravam o grande feito
de Peter, a ideia genial que ele tivera ao convocar as crianças do mundo
inteiro para restaurarem a força e a esperança de Sininho. Não repararam que a
homenageada estava convalescendo. Não perceberam que ela estava ausente. Não se
deram conta de que ela tinha trocado a sua vida pela do Peter ao ingerir o bolo
envenenado.
À noite, Peter veio cumprimenta-la e ela adormeceu. Dormiu por
três dias e três noites. Teve sonhos muito estranhos. Em um deles foi informada
de um novo reino que surgira: Storybrook. Acordou na terceira noite. Tudo estava
normal. Sobrevoou a terra dos índios, o rio das Sereias, a árvore onde Peter e
seu bando dormia, o navio dos piratas. Derramou três lágrimas e da terra
próxima ao esconderijo brotaram três lírios de perfume inebriante. Alçou voo. Não
era mais uma bolinha prateada, como costumava ser. Era um sol dourado a cortar
o céu.
Dizem que apenas a princesa índia Raio de Sol a viu. Dizem
também que a perplexidade de todos foi retratada, não se sabe como, por um
artista que reproduziu algumas cenas. Em uma delas, Peter de pé sobre o rio,
espera seus súditos e Wendy, mais abaixo, olha o céu como se tivesse certeza da
volta de Sininho. Mas tudo isso são lendas...
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