Friday, November 04, 2016

Nova Ariadne
(Luz... Porto)






Fui criada para ser boa. Boa filha, boa católica, boa Filha de Maria, boa aluna, boa irmã, boa esposa e boa mãe. Fui batizada, consagrada, crismada. Dos sacramentos, que me lembre, só não fui ordenada. Até quis. Deus talvez não quisesse. 
Vivi minha vida como pude. Creio que a encefalite de minha irmã caçula e afilhada deixou sequelas indeléveis em todos nós. Mais nela, que sofreu e sofre na pele. Impressionável, fiquei muito abalada e, repassando a vida neste limbo em que me encontro, talvez seja esta a razão de ter ficado mal na gravidez de minha caçula. Sonhava que ela nasceria com problemas. Mongolóide. Síndrome de Down é expressão relativamente recente. Ou que ela adoeceria como minha irmã. Naquela época engravidar na idade que engravidei era tarde. Bobagem! Mas eu e mamãe tínhamos a mesma idade quando engravidamos de nossas caçulas.
Perdoem-me se me perco no fio da meada, mas minha consciência, minha alma ou meu espírito, estão confusos e difusos. Vago por aí em busca dos meus lugares preferidos e busco tecer de novo minha história. Como ia dizendo, fiquei abalada e não fui presente na infância de minha caçula. Não em sua vida social. Acabava por prendê-la em casa para poder senti-la mais a meu lado. Isso nos afastou. Ela é sensível e se apegou mais ao pai. Agora, isso não passa de um pontinho visto do cume de uma montanha. Ou de um precipício. Ela fez as pazes comigo em algum momento. Talvez na doença do pai. Talvez na minha velhice mais acentuada. Ela nunca resistiu a um velhinho doente...
Por que falo nela? Não, ela não é minha preferida. Mas são as orações dela que me chegam em meio ao torpor em que me encontro. Ela me chama para sair do CTI e vamos a vários lugares. Atravessamos tempo e espaço. De sorte que eu a levo à praia em criança, levo-a à praça de Friburgo para vê-la andar de bicicleta, viajo de trem com ela e fazemos piquenique no Cão Sentado.
Ela sempre foi meio peculiar. Adorava Mitologia Grega em criança. E bonecas de papel. Com uma certa coleção, ela montou seu Olimpo feminino. Conhecia cada uma por seu nome grego e pelo romano. Assim acabei sabendo das Parcas ou Moiras. As três irmãs do Destino. Cloto, Láchesis e Átropos. A primeira segurava o fuso da roca, ou Roda da Fortuna, e criava o fio. O nascimento. A segunda tecia e recolhia o tecido. Determinava a Sorte ou Fortuna. A terceira cortava a trama. A morte. Curiosamente ela escolheu três bonecas com aparência de meninas. As duas primeiras tinham a boca meio aberta, em expressão de surpresa. A última era mais séria. Tinha uma estrela brilhante no penteado e carregava uma tesoura desproporcional. Escolha sensata. A vida nos surpreende para o bem ou para o mal.  A morte é que nos permite a glória da Vida Eterna.
Não me entendam mal. Não acredito em macumba ou em mitologia. Sou e sempre fui católica praticante. A experiência da quase-morte ou do limiar da morte, para ser mais exata, me fez pensar em outras coisas. Por outros ângulos. Ou talvez fale assim por estar fora de mim.
O fato é que tinha pedido uma prorrogação a Deus. De alguma forma, Ele me deu. Como a caçula pensa muito em mim, medita comigo, lembrei-me das bonecas. E das muitas histórias que contei a ela e às outras filhas. Sem dar a perceber , aproximei-me de Átropos e a envolvi com histórias mirabolantes, engraçadas, trágicas. Ela já viu de tudo,  é claro, as histórias da família ela conhece de trás para frente. O segredo está na arte de contar. Papai conheceu e era fã do Malba Tahan. Li muitos livros dele. Havia um chamado A Arte de Ler e Contar Histórias. Tornei-me uma versão bisavó de Scheerazade e barganho com ela, a que corta, minha permanência neste plano. 
Melhoro. Pioro. Tenho edemas. Desincho. Respiro mecanicamente. Tiram-me do respirador. Tenho infecção. Recupero-me. Luto para ficar. Láchesis se desespera. Não sabe o que tecer, como preencher minha existência já vencida. Nem eu mesma sei ou posso responder. Medo da morte? Culpa ou medo de deixar minha afilhada dependente? Saudades? Aprimoramento espiritual? Vontade de sofrer para me aproximar dos santos da minha devoção?  Não sei. 
Sei que passeio por aí em paisagens quase vazias. Revejo minha infância feliz, 
minhas filhas. Vivo coisas que não vivi. Nem imagino como serão minhas 1001 noites. Nem sei se chego a tantas. Talvez esteja brincando de João e Maria com o Destino para depois encontrar o caminho de volta. Talvez seja a nova Ariadne, não a que dá o fio a um Teseu ingrato, mas a que penetra surdamente no labirinto e faz amizade com o monstro carnívoro. Talvez não haja caminho. Apenas nosso rastro em alguma praia deserta...

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