Thursday, January 11, 2007


MEUS MORTOS
(Luz... Porto)
Meus mortos não usam sobrecasaca.
Eles são mais caseiros, mais simples.
Meu Carlos usa calças de tecido,
Camisas de mangas curtas e botinas fechadas,
Feitas por medida, sequela de fratura
Sofrida ainda em ventre materno.
Minha Irene agora só usa peignoir
E um cinto velho, puído por baixo dele
A representar o martírio de não sei bem que santa
Que a absolveria dos muitos "pecados" cometidos.
Meu Paulo, sempre dentro, desde antes
Até o fim dos tempos,
Veste apenas umas bermudas e calça franciscanas.
(Em havendo visitas, usa camisa de botões.)
No mais, traja seus inesquecíveis pijamas azuis
E suas samba-canção, recuerdo da juventude.
Carlos, Irene e Paulo tomam café preto bem forte,
Coado por artefatos primitivos cosidos por Irene,
Coadores sustentados por tripé feito por Carlos.
Paulo é quem prepara sempre o café matinal
E traz da rua o pão quentinho, sem bromato,
Em que se espalhará manteiga, não margarina.
Enquanto a casa se espreguiça, sonolenta,
Os três sentam-se à mesa da cozinha
Coberta por linóleo limpo, dos anos dourados.
Irene parte o pão com serrote grande:
A ela cabe o meio, aos dois, as pontas.
Todos tiram o miolo do pão
-Mas Paulo o cata e o come escondido-
Antes de passar a manteiga.
Mergulham-nos nas grandes xícaras de café
E comem enquanto conversam.
Antes das seis Paulo sai e pega a barca.
Carlos toma a bicicleta e dirige-se à escola
Onde se divertirá com seus alunos.
Irene recosta-se na poltrona
Agora já destruída pelos ratos
E começa suas ladainhas sem fim.
Às vezes desvio-me de um cigarro
Que Carlos, desavisado, sonolento,
Quase deixa tombar do sofá abóbora e branco
Que já há muito não há.
As panelas de Irene ainda fervem
Seu inimitável doce de leite,
Ou ambrosia no Nordeste,
Segredo que levou para o túmulo
Junto com minha boca tatuada em vermelho
E que exala aquele cheiro de infância.
Converso sempre com Paulo.
Em dias de sono pesado
Ele abre a porta de meu quarto
E me chama para o trabalho
Ou para o antibiótico com hora marcada.
Nas noites em que o peito se me aperta
E eu sufoco em lágrimas contidas
Ele vem, deita-se a meu lado
Toma a minha mão, apertando-a.
Sei então que tudo ficará bem
E, com os olhos úmidos, adormeço.

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