Sunday, November 12, 2006


PRISMA
(Luz... Porto)
O telefone tocara. Cercada pela névoa inconsciente que a embalava, não conseguira distinguir realidade de ficção. Em meio a seu sonho, atendera-o preguiçosa. Do outro lado da linha, silêncio. Mas havia alguém lá. Alô, alô, repetiu cada vez mais alto. Oi, disse-lhe a voz distante. Era ele! Reconhecera-lhe o timbre, o aveludado, a entonação. De um pulo ajeitou os cabelos, fez como se limpasse os olhos, ajeitou o pijama de cetim, afofou os travesseiros e, totalmente casual, respondeu Tudo bem?
Entabularam uma conversa comprida como se tivessem se visto há menos de uma semana. Troca banal de palavras entre amantes separados no tempo, na geografia e no registro civil. Falaram sobre as chuvas, sobre a primavera (ou seria outono?), sobre os amigos em comum, sobre os gatos, paixão antiga compartilhada em segredo.
Marcaram um encontro mais à tardinha. Um cinema, para variar. Um filme esquisito, desses que ela tanto apreciava. Comendo os Ricos. Atores desconhecidos, diretor desconhecido. Deveria ser bom.
Cumpriu seu ritual próprio para encontros especialíssimos. Shampoo alemão, escova de chocolate, depilação, manicure e, então, suas delícias mais pessoais: esfoliação, banho com sais e óleos aromáticos, máscara facial de argila, fubá para a retirada da mesma, leve hidratante para não deixar o rosto oleoso. Por fim, o rico perfume francês generosamente borrifado ao redor de todo o seu corpo. Lingerie nova e suave, meias finas, altos escarpins de verniz negro, vestido diáfano e decotado, xale para proteger-se do ar refrigerado. Bijouterias grandes e coloridas. maquiagem suave: um pouco de corretivo, leve pincelada de blush e o batom, sua marca inconfundível. Trancou o apartamento, chamou o elevador, tomou um táxi e despencou-se para o Estação.
Súbito, cruzava a baía ao lado de seus gatos e de seus mortos mais queridos. As poltronas da barca forraram-se de veludo escarlate e garçons solícitos serviam-lhes champanhe, com baixíssimo teor alcoólico. Os corrimões de madeira eram agora de bronze lustroso e tapetes amaciavam seus passos sobre o chão e as escadas de madeira velha. Um elefante nadava ao largo, enquanto garças enfeitavam o cair da tarde. Seu vestido ajustara-se-lhe ao corpo delgado e alongara-se em tafetá rubro e cintilante. Seus sapatos tornaram-se sandálias douadas e seu xale virou estola de pele falsa. Suas bijuterias, jóias resplandecendo em seu colo e lóbulos. Seus cabelos cresceram-lhes negros e abundantes como outrora, só que lisos. Seus olhos se abriram normais e ela enxergava o mundo como se espessa cortina tivesse sido arrancada de suas janelas.
Do fundo da barca, surgiu-lhe o Príncipe Encantado de sua imaginação pueril. Tomou-a nos braços e dançaram, não a Valsa do Imperador, mas belo e lânguido tango argentino, regado a bandoneons e iluminado por veras aromáticas. Beijaram-se ardentemente e foram se dirigindo à cabine principal onde fizeram amor em cama de dossel.
No melhor de tudo, um ruído. Insistente. Repetitivo. Como, pensava? Não havia telefones na barca! Mas não. Era o telefone. Acordou assustada e uma voz feminina e familiar lhe disse Oi!. Conformada, ela retrucou Tudo bem? Como vão as coisas? A outra, O que houve? Estou tentando te ligar há séculos! Você não atende mais o telefone? Desligou-se do mundo? Eu queria...

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