Sunday, November 12, 2006


Entre as frestas
(Luz... Porto)
Nunca conhecera o amor. Tivera, é claro, suas paixões, seus envolvimentos. Mas amor, amor, este nunca a havia tocado. Era passional, dramática, efusiva. Namorava bastante, saía, flertava. Cupido, moleque teimoso, beliscava seu coração. Ela intuía a existência do amor, mas não o sentia.
Até que certo junho veio, com ele o fim do outono e as festas de inverno. Uma brisa roçou-lhe meio de banda a alma desavisada e uma pena de sabiá marcou-lhe a varanda de ladrilhos brancos. De onde viera? Seria um sinal (Como era primitiva, tentando ler nos sinais de fumaça e nas nuvens desígnios dos deuses!)?
Ouviu a canção homônima na voz de Zé Renato e concluiu que definitivamente era um presságio. Tentou comprar o LP, mas estava fora de catálogo. Conseguiu uma gravação pirata e chorou com os versos "Tanta estrela lá no céu que até uma caiu na ponta do meu chapéu".
Viajou até Cabo Frio onde, numa feirinha do arrabaldezinho, encontrou, não balões, mas um brinco de penas azuis. Presságio confirmado. Algo estava prestes a acontecer. De posse do novo adorno, esperou. E os dias se passaram. E dormiu. E sonhou. E no seu sonho mais nítido sentiu a presença de um improvável colega que a olhava e dizia "Sabia que ia dar merda". Palavra tão feia, tão chula, num sonho tão onírico, tão cheio de pássaros e de varandas! O que teria aquela improbabilidade a ver com sua história pessoal?
Com esses fragmentos compôs um mosaico a lhe adornar as cortinas inexistentes da janela antiga que dava para a casa de seus sonhos, que dava para toda a solidão do mundo, qual a Paris descrita por Vinícius nos idos de 66. E o mosaico decompunha a luz do sol a penetrar pelas frestas. Desenhos mouriscos formavam-se no chão de tacos que não viam sinteco há uns quinze anos. Viajava pelas mil e uma noites através desses desenhos que à luz da lua manchavam-se de uma gota de sangue.
Como na canção de roda, o tempo correu a passar. Sua alma não era a mesma. Algo se partira dentro dela como grão de trigo que medra, como borboleta que irrompe do casulo.
Junho voltara e quando se deu conta estava com o rapaz do sonho em meio a uma confusão de transportes, de bilhetes não reservados, de música não ouvida. Programa alterado, jantaram e voltaram à casa cercada por bicos-de-papagaio e flores-de-maio.
A pena de sabiá doeu-lhe o peito. Ao olhar para ele, viu-se nua, de uma nudez quase indecente de tão despida, em meio à fartura de tecidos que a recobriam. Não sabia o que fazer. Aceitou-lhe o beijo. O mosaico mourisco que lhe adornava as janelas da alma partiu-se e ela foi tomada por uma timidez adolescente, uma castidade tão desconhecida que se sentiu no momento da criação, na Epifania dos primeiros versículos do Gênesis.
Não saberia dizer se ele a vira, se os olhos dele leram o que se passava nos dela. A dor era tanta que jurou a si mesma tecer com grossos fios nova cortina a encobrir-lhe o olhar. Não naquele instante. Mais tarde. Faltavam-lhe a roca para fiar, o tear para tecer. Um raio iluminou-lhe a alma e ela viu, como Sêmele vira a Zeus em todo o seu esplendor e grandeza. Não sucumbiu em meio às chamas, pois apenas O viu.
Pronto. Finalmente fora apresentada ao Amor. Antes que o ceticismo lhe tingisse os fios, que o auto-controle guiasse suas mãos no tear, que a razão orientasse a direção da trama, ela se abrira ao Amor. Nunca teria a coragem de compartilhar essa experiência, impossível descrevê-la. Antes que a vida lhe cobrisse novamente os olhos com a fina catarata do desencanto, vivera o amor. Jamais seria a mesma de novo, isso jamais se repetiria. Mas qualquer olhar que lhe fosse cúmplice naquela cidade de cem milhões de habitantes, veria por entre as frestas a alma jovem, porém antiga, desvirginada pelo Amor e, por isso mesmo, prenhe da mais absoluta castidade e falta de jeito juvenis.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Querida dama da noite, esse colorido com que pintas o encontro é como o sol brilhando em plena madrugada, aquecendo a alma de esperança!

22 November, 2006 09:33  

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