Saturday, April 19, 2014

Macondo
(Luz... Porto)



     Vão ver se estou em Macondo, disse o velho Gabo. Sentados ao redor da longa mesa da cozinha, entreolhamo- nos. "Mas já estamos em Macondo, sussurramos". Ele anda é meio esquecido, isso sim.
     Lá fora chovia. Chovia, chovia e chovia. Nossas almas ficavam lavadas e engomadas de tanta chuva. Só Aureliano reclamava. Água demais. As crianças, os cães, os gatos se divertiam pulando nas poças. Todos nos secávamos nas várias toalhas de linho tecidas por Pilar em sua roca e bordadas por sua avó. Era bom ter sempre um pano quente para nos abraçar a alma.
     Fantástica fora a descoberta do efeito dessa chuva: nossos cabelos, sempre rebeldes, cabelos nunca ficam do jeito que queremos. Com essa chuva ininterrupta eles passaram a se amoldar a nossos desejos. O sumo que escorria das flores nas copas das árvores nos abria um leque inimaginável de possíveis matizes para nossas madeixas.
     Quanto aos aromas, ai, que aromas! Flores com notas de frutas em fundos amadeirados. Cada um de nós escolhia o perfume que mais caísse bem ao nosso estado de espírito.
     Úrsula aprendera a fazer sapatos. Sim, sapatos. A chuva, de certa forma, limita as possibilidades se diversão. Sapatos de todas as cores, de diversos materiais, com texturas variadas, com os quais bailávamos até o dia raiar.
     Remédios preparava iguarias saborosas. Gabo era um bom garfo. Sempre havia um toque de alguma coisa, uma especiaria diferente a nos aguçar o paladar.
     E como passeávamos pelos rios.Decorávamos os barcos e cantávamos canções das avós de nossas babás. Gabo esboçava um sinal de aprovação, imerso em suas memórias que não compartilhava conosco.
     Nosso sono era povoado de sonhos fantásticos que eram contados à mesa. Amaranta era imbatível. Ninguém sonhava tão lindo quanto ela. Todos seus sonhos eram filigranados e os desenhos que deles saíam terminaram por cobrir-lhe a cicatriz da penitência auto-imposta.
     Estávamos naquele paraíso, mas Gabo parecia não se dar conta. Foi então que José Buendía resolver chamá-lo a si: "Gabo, ele disse em voz firme, porém suave. Lembra que as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a Terra".
     Gabo abriu os olhos, olhou a seu redor. Percebendo que não estava mais na Terra, mas sim em Macondo, foi tomado de uma imensa ternura por todos nós. E sorriu em paz.

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