Tuesday, November 22, 2016


As Cinco Pontas de Uma Estrela
(Luz... Porto)


Quando me casei, ganhei um relógio de corda, como o que meus pais tinham. Curiosamente, estampava o meu nome gravado: Norma. Claro que era o nome do fabricante, mas achei a coincidência feliz. Meu marido dava corda, acertava os ponteiros e os pesos que o mantinham em funcionamento. Era parte importante da sala.
Tive minhas filhas e só a caçula a implicar com ele. Eu tomava como ofensa pessoal. Ela pedia ao pai que o parasse para que ela pudesse dormir. Sono atormentado ela tinha. As circunstâncias a fizeram dormir na sala por uns dois ou três anos, no sofá-cama. O relógio só era acionado depois que ela acordava. 
Faço aniversário em 16 de julho. Em um desses anos perdidos nas areias do tempo, a caçula precisou operar as amídalas. Cirurgia marcada para 17 de julho. Na véspera,  estávamos um tanto nervosos. Medo de que ela tivesse mais uma das infecções recorrentes que, só depois, entenderíamos como alergia. Havia uma certa tensão que se dissipou por volta das nove ou dez da noite quando o relógio caiu da parede para susto nosso e alívio da pequena. Meu marido guardou as peças para um futuro conserto que nunca chegou. A caixa de madeira fora roída por cupins.
Pensando nisso agora, quando os cupins do tempo já comeram muito de minha energia e quando olho a clepsidra e constato a velocidade com que os grãos de areia correm para a metade inferior, talvez gostasse de fazer como ela e pedir ao pai (ou ao Pai) que ele interrompesse Chronos para que eu pudesse dormir em paz.  Que exploda a ampulheta, enchendo o CTI de areia monazítica.
Que minha vida, bem ou mal vivida, escorra pelos degraus e, varrida pelo vento de uma tempestade primitiva,  dê no mar, onde, citando de cabeça uma canção muito ouvida pelas minhas duas caçulas, eu possa virar peixe, virar concha, virar seixo, em noite de lua cheia. 
Estou presa, vivi presa por muito tempo. Já tinha desistido de morrer quando tudo isso ocorreu. Não suporto mais estar aqui, ferida, furada, mexida, revirada, costurada. As pessoas me olham, querendo alguma coisa, alguma reação. Eu não reajo. Querem que eu interaja! Nem eu sei bem onde está minha cabeça! Vagueio por névoas que me levam à infância,  à doença da minha irmã, a meu batismo na praia, que minha filha do meio nunca entendeu. Não leu Uma Aprendizagem Ou O Livro Dos Prazeres. Também não li. Mas tinha o hábito de ler coisas das minhas filhas e li um texto que a caçula escreveu para a faculdade. Visito meus temores. Alguns se dissiparam, outros tomaram proporções gigantescas. Alguma coisa estalou em minha cabeça - e não foi o estalo do Padre António Vieira - e não sei se estou lúcida ou demente. 
Uma estrela de cinco pontas me prende. Não é uma estrela que brilha. Em cada ponta, uma filha. Na última, minha irmã caçula e afilhada. Julgo-me culpada. Sempre me senti assim. Nesse momento, as falhas pesam como bolas de chumbo. Nada do que eu fiz de bom  ou deixei de fazer de mau aparece para minha redenção.
Sou o Cristo Crucificado pelos pecados alheios e pelos próprios que tomo sobre minhas costas tortas. "O médico falou que nunca viu coluna tão ruim quanto a de mamãe", repete-me a primogênita. Não quero ser Cristo, desisti de ser freira, não sou santa como vocês gostariam. Sou uma velha teimosa cujos cabelos não embranqueceram e que adoraria virar pôr-do-sol, dar sua última energia para vocês enfrentarem a noite que se aproxima até que, na eterna mutação, eu venha a trazer novamente os raios dourados, renovados, do amanhecer.
Das pontas da estrela, uma, em sua total inocência e falta de proteção,  aguarda-me em casa para dormir a meu lado. Outra acredita que eu volte para a casa.  Precisa acreditar. Chova ou faça sol, está a meu lado. Interpreta qualquer reação muscular como resposta. Reza e sofre, mas é proibida  de chorar. Brinca de jogo do contente. Não consegue rezar ou pedir a mim para que eu me vá, como fez com o pai. A orfandade total pesa... A terceira quer que tudo seja feito segundo a minha religião e se opõe a tudo que não seja convencional. Disse para o pai, uma vez, que ele já devia ter morrido por estar velho. Velho? Estou seis anos e pouco mais velha do que ele estava quando partiu. Acho que ela não suportava o sofrimento dele. Acabou sofrendo muito e endureceu mais do que precisava. Não pode me ver e se ressente por isso. A quarta... A quarta quer que eu me vá para não sofrer. Trôpega, torta e com dor, não deixa de me visitar. Canta o que eu gosto e o que nem sei se gosto. Tem medo de olhar para mim e não me ver mais no meu corpo maltratado. Tem culpa por não ser otimista. No íntimo se pergunta se eu não vou começar a fazer milagres... As chagas... A última... A última sente saudades e, chorona, não chora a meu lado. Tenta me embalar com seus sonhos e contos. Precisa desesperadamente ser embalada.  Crê que nossos espíritos se encontram à noite e chora a mãe que nunca teve. Morre de medo de eu estar sofrendo. Também sente culpa. Herdou o pior de mim. Visita-me pouco. Imaginativa e hiper sensível, via o pai naquele corpo inerte cujas reações nós não percebíamos.  Verá minha alma ou a mim se eu voltar, do jeito que eu voltar...
E esse relógio... Que horas são? Pra quê saber? Virão me dar banho? Ainda estou viva ou tudo não passou de um sonho? Quero falar... As palavras não saem. Batem na minha cabeça e ecoam por dentro. Me leva logo, meu Deus! Já disse que não aguento mais... Que eu ouça logo a ampulheta se espatifar e voe para onde não haja tanto sofrimento. Fracassei... Perdão...

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