Friday, May 02, 2014


A corça dos cascos de bronze
(Luz   Porto)
À Denise Vianna




     Minha mãe quer que eu seja bailarina, mas eu não quero. Eu só quero dançar tango.
     Uma pessoa não pode ser aquilo que as outras pessoas querem que ela seja. Uma pessoa só pode ser aquilo que ela é. Esta é a única e tormentosa trilha que nos levará a Deus, por meio de nossos abismos interiores e encruzilhadas infernais.
     Eu não sei ainda o que sou - talvez nunca saiba, talvez não veja a Deus. Eu posso morrer sem saber o que sou. Mas não posso viver sendo o que eu não sou, disso nós sabemos. Incomoda e dá bolhas como um sapato apertado a impedir-nos a circulação, ou como um sapato largo que termina nos ferindo de tanto roçar os mesmos cantinhos dos pés.
     Minha mãe não sabe disso e vai morrer sem saber, desconfio. Minha mãe tem tantos calos que seus pés se deformaram e perderam a sensibilidade. Então ela não consegue caminhar direito, ela não consegue trilhar o seu caminho, muito menos desbravar qualquer outro. Seus pés não conseguem sentir a grama nem os contornos do solo onde pisa.
     Sento-me com as pernas cruzadas e observo meus pés. Lisos, sem deformidades. Nada de joanete ou esporão. Sem unhas encravadas nem calos a serem cirurgicamente removidos. Quase tão inefáveis quanto os da minha avó, mas esta não ia mais a parte alguma.
     Em meus sonhos calço sapatos estranhos. Uma vez sonhei que, à moda de Cinderela, a que vive nas cinzas (seria uma Fênix?), calçava sapatos de porcelana inglesa. Lindos. Mas pouco práticos. Eles se quebrariam com facilidade e eu acabaria me ferindo.
     Em outros, percorro a cidade descalça. Talvez precise trilhar meu destino como uma Lady Godiva: descalça e nua...
     Entre o ser e o não-ser, entre o ser e o vir-a-ser há uma ponte intransponível. Eu precisaria do sorriso do gato de Alice para me transportar para além do espelho e descobrir o que há por lá
     Aventura perigosa. Pode não haver nada. Posso não ter o bilhete da volta. Posso ficar presa no não-ser ou no vir-a-ser. Afundar em areias movediças, ficar sem ar, sentir-me em uma camisa-de-força
     Deveria aceitar quaisquer sapatos, como a minha mãe o fez, e seguir adiante. Mas nasci com essa mania incontrolável de querer olhar dentro de mim, de ver as entranhas da minha alma, de tentar ficar face a face com Deus.
     Saída? Só a de emergência...

0 Comments:

Post a Comment

<< Home