Sunday, May 11, 2014


Dia, mania...
(Luz... Porto)

À Norma Thereza Velloso Porto.


Conheci Sueli Costa através do Quarteto em Cy. Não tinha ido ao show, apresentado na Reitoria da UFF. Era uma segunda-feira e tinha prova de OSPB na terça. CDF, quis ficar estudando. Minhas irmãs foram. Houve uma confusão danada por conta da Censura, o show foi interrompido por causa de alguma música. Cyva, Soninha e Dorinha Tapajós confabularam. Cynara voltou ao palco apresentando uma canção inédita da Sueli com letra de Paulo César Pinheiro. Apaixonei-me na hora. Claro que minhas irmãs conseguiram, não sei como, uma fita pirata desse show. Que eu praticamente furei de tanto ouvir. A canção? Cordilheiras. Melhor interpretação que já ouvi.
Fissurada pela boa MPB, como sempre fui, saí à cata dessa Sueli Costa. Descobri canções que Bethânia cantara e gravara, interpretações da Elis e, como dizem que o universo conspira a favor, a MPB FM, única rádio que eu ouvia, fez o lançamento do segundo LP da Sueli em uma tarde de sábado. Entre as várias faixas, havia uma que me remeteu à minha história: Pedra da Lua. Que não era dela, e sim uma parceria do Cacaso com Toninho Horta.
Um trecho dizia:"Minha mãe no seu piano morrendo dentro da tarde, com seu sorriso mais puro. Toda vestida de branco, velando os meus passos, velando os meus tropeços. Menino, não morra cedo. Menino, não chegue tarde e dia, folia".
Bem, minha mãe não vestia branco e não lembro se trazia o seu sorriso mais puro ao tocar o seu piano. Ela, concertista, abandonara a carreira e, grave, o piano, em prol de suas filhas. Dezoito anos sem tocar e um dia ela volta. Mas eu tinha uns dez anos. Era egoísta como as crianças de dez anos sabem ser. O piano ficava na sala junto com a TV. O horário do piano era o Ângellus e coincidia com... Get Smart! Agente 86. Covardia.
Saíam discussões, mas, não sei se a mãe ou a pianista foi mais esperta. Uma tarde ela me toca Jeux D'eau de Ravel. Calei-me. Calou-se o mundo. Só via a minha mãe ir e vir no teclado num frenesi lindo. Só via o rio a correr, as quedas d'água. Mal respirava para não perder nota alguma. Êxtase total. Conhecera o paraíso. E ele tinha vales de onde jorravam o leite e o mel e as águas sagradas.
Do alto de minha autoridade de filha caçula, disfarcei as lágrimas, ela estava de costas pra mim, o nariz fungando era facilmente atribuído à minha alergia, perguntei o nome da música, de quem era, essas coisas. Ela me respondeu acrescentando que era uma peça 'impressionista'. Impressionada fiquei eu, mas não dei o braço a torcer e disse algo como:" Tá, você toca o seu piano, mas tem que tocar Jeux D'eau todos os dias". Ela argumentou que era uma peça trabalhosa, eu retruquei que perdia Get Smart (os fãs da série sabem bem o que isso significava). Por vários meses eu desfrutava sozinha dessa virtuose. Meu pai e minhas irmãs trabalhavam e/ou estudavam no horário.
Como o Destino gosta de nos maltratar, mamãe passou a ter sérios problemas na coluna e o piano emudeceu. Emudeci também. Com o tratamento, fisioterapia e natação, ela voltou a tocar. Aos poucos. Só que Jeux D'eau exigia demais dela. Para amenizar minha tristeza, ela tocava Reflets Dans L'eau de Debussy. Não era a mesma coisa, mas valia o esforço. E veio Kételby com o Mercado Persa, No Jardim de um Templo Chinês. E outras peças além de Chopin (acho que o preferido dela), Beethoven e Lizst.
Nova brincadeira. Veio a Toxoplasmose e ela acabou perdendo a visão de um olho. Não conseguia mais tocar lendo a partitura. Só de memória. Ela se lembrava de muita coisa bonita, mas queria mais.Passou a compor. Registrava tudo em K7s que se perderam. O piano não ficava mais na sala e sim num quartinho perto da garagem que meu pai mandara construir. Os vizinhos usufruíam da música, Dr Nelson Lamy chegou a convidá-la para tocar em sua casa e flagrei vários moradores do morro, ao pé do qual morávamos, parados e embevecidos.
Com a mudança de horário, várias vezes adormecia para uma soneca ao som do piano. Os bichos também ficavam quietos ao redor.
Não posso ouvir Jeux D'eau sem chorar. Mais ainda, sem ver, em minha alma a concertista vestindo traje de gala para a plateia solitária de sua maior fã nunca revelada.

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