Sunday, May 11, 2014


EDUARDO
(Luz... Porto)
À memória de Eduardo Villas-Boas Thomé Torres



  Essa noite eu sonhei com Eduardo. E ganhei cinco anos e pouco a mais. E tirei o peso desses cinco anos. Aquele sábado, véspera do Dia das Mães em 2011 fora apagado. Talvez até aquela semana desagradável.
  Minha mãe fora internada no Procordis, eu acho. O CTI não tinha vaga, então foi para a unidade de pacientes semi-intensivos. Fui avisada na terça à noite. Trabalhava em São Gonçalo. Os alunos me viram empalidecer e ficar tonta. Que medo de minha mãe ter complicações como as que teve meu pai! Dei aula chorando.
  Mamãe ainda não falava normalmente quando a visitei na quarta. Reclamou da comida e do barulho. Eram muitos pacientes. Ela não conseguia dormir. Na quinta, foi para o quarto. Foi a vez de nos revezarmos. Por conta do trabalho, minha escala foi para o sábado. Antes de sair para o hospital, tive uma das minhas quedas. Coração apertado. Não falei com ninguém. Lembrei-me que a anterior tinha sido um desmaio. Na mesma hora em que minha irmã recebia a notícia de que tinha um tumor...
  Passei a noite com ela, assistimos à novela. Lá pelas dez ela pediu para dormir. Eu não conseguia. O coração estava aflito, mesmo sabendo que ela teria alta para passar o Dia das Mães em casa. Acabei cochilando. Conversei com o neurologista e coisa e tal. Ela fez uma avaliação mais detalhada e foi se recuperando.
  Uns meses depois bateu uma saudade do meu primeiro namorado. Vontade de saber dele, de ter notícias. Fucei a internet. Nada. Fui colocando o nome dos irmãos. Quando cheguei no nome de Eduardo, deparo-me com uma notícia horrenda. Um desastre de carro na Via Lagos vitimara o rapaz, ferira gravemente sua mulher, mas a filha de quase um ano saíra totalmente ilesa. O acidente ocorrera no sábado, véspera do Dia das Mães...
Perplexa, ferida, comentei com minha irmã, achando que fosse uma novidade. Não era. As duas outras tinham comparecido à missa de sétimo dia com o meu cunhado. Deram pêsames à família, confortaram o irmão e nem me avisaram. Com medo de uma queda, suponho. Mas fui alijada daquele momento tão especial, tão doloroso. E nem sequer mencionaram meu nome.
  Eduardo foi meu amigo de fé dos oito aos dezoito, creio. Nas férias de Friburgo. Éramos inseparáveis. Corda e caçamba. Cinema, pique, bicicleta, crianças. Fui babá de muitas e, quando via, lá estava ele a meu lado. À noite, tomávamos sundae. Um sundae especial que o dono do Breno’s, lanchonete recém-inaugurada, preparava para ele. Muiiiiita calda de chocolate, castanhas e quase nada de sorvete. Eduardo era desses que fazem amizade ou camaradagem com todo mundo. Eu, na condição de “acompanhante”, tinha o privilégio do tal sundae. Comíamos pipoca na praça. Uma pipoca inesquecível, feita no vapor. Também visitávamos a casa dos tios, no Parque Dom João VI. Frequentávamos, às vezes, a piscina do Vale do Luar. Conhecemos os Beatles juntos. Pegávamos a chave do carro de minha irmã e ouvíamos as fitas que ela tinha. Também ouvíamos música italiana.
  Uma coisa engraçada era que, nesse tempo, eu ganhava UM par de sandálias para as férias. Normalmente vermelhas. Elas deveriam durar bastante. Pois o Eduardo me arrebentou várias. Devo ter reclamado da primeira vez. Depois, nem ligava. Não que ele fosse agressivo, imaginem! Acontecia durante as brincadeiras de pique e coisa e tal. Na última vez, ele pegou um pedaço de pau para demonstrar uns golpes de Tae Kwon Do. Eu estava na mira e me assustei. Fiz um movimento de defesa e perdemos o equilíbrio. Fomos ao chão e.... mais uma sandália. Quer dizer, menos uma.
  Inventávamos brincadeiras, festas na travessa, travessuras, algumas um pouco impublicáveis. Certo ano, quando cheguei a Friburgo os meninos já estavam. Os vizinhos reclamavam da falta de luz. Havia um poste com a lâmpada quebrada. Veio a Companhia e trocou. Foi então que vi uma espingarda de chumbinho... Para bom entendedor... Ri e perguntei aos irmãos: “E agora?”. “A gente quebra de novo. Mas você pode ajudar.” Com meu ar de boa menina – e eu era mesmo – conversava com as vizinhas que poderiam flagrar o delito. Puxava uma prosa interminável.... Vinha o tiro e, à noite... “Não! Outra vez? Serão moleques?” Eu sugeria que a lâmpada podia ficar muito quente e com a chuva da noite explodir. Acontecera na varanda lá de casa. A mentira não era inteira, pois de fato vira acontecer lá em casa. Com isso, tivemos boa parte das férias em uma travessa semi-iluminada, o que muito favorecia nosso pique-esconde.
  Em outro Carnaval, organizamos a Festa do Penico. Eu já não era tão garota assim. Uma obra em uma das casas deixou um vaso sanitário para trás. Pensamos besteira. Ele foi guardado no quintalzinho lá de casa. Por alguma sincronicidade, mamãe descobrira entre uns guardados o penico que eu usava em criança!!!! Mamãe guardava umas lembranças muito exóticas de cada filha, mas isso é outra história. Perto do Carnaval, acionamos as casas de cima, a da minha avó e a exatamente oposta, que minha irmã mais velha alugara para as férias. Os meninos estenderam uma corda, de janela a janela, cruzando a travessa. No meio, o peniquinho azul. Cercando o objeto, os dizeres: FESTA DO PENICO DA LUZIA!!!!!
  Na sexta, limpamos o vaso, compramos uma cabeça de cera e um charuto em uma casa de produtos de macumba, compramos um chapéu no DRAGÃO. Eduardo e o irmão fizeram olhos com pedaços de espelho que eu, supersticiosa, me recusei a quebrar. Colaram na cabeça. Pusemos o chapéu. Um falso Panamá. Fizeram um buraco na boca onde o charuto foi colocado. Aceso. De vez em quando alguém dava uma baforada para reacende-lo. Compramos flores perto da funerária. Batizamos a cabeça com o nome de um vizinho que brigara com um dos meninos. Teve até bailinho. E todos olhavam para o penico pendurado... Um mico a que me submeti de bom grado. Depois veio a chuva, a corda cedeu e na quarta-feira o caminhão de lixo levara, sem saber, meu peniquinho azul...
  Há uns nove anos, ele passou de carro na travessa, buzinou e falou com uma vizinha, também já falecida. Ficou um pouco, conversou com quem estava lá, perguntou por mim e seguiu viagem. Cerca de meia hora depois eu cheguei para passar o carnaval na travessa. E fiquei na esperança de reencontrá-lo assim, por acaso. Pois é. O acaso não quis o encontro.
  Às vezes sonho com ele. Essa noite foi bem nítida a visita. Eu telefonava à sua procura e não o achava. Aí ele chegava com seu sorrisão e falava: "Procurando por mim? Que bobagem. Tô aqui." E a gente se abraçava e sentava na janela da casa de Friburgo, nosso lugar favorito. Conversávamos. Falávamos besteira. E, à falta de uma caneta e de papel, eu pegava dois palitos e jogávamos jogo-da-velha em sua barriga super queimada, como já o fizéramos. Nos sorrimos e eu acordei. Acalentada, mas com lágrimas nos olhos.

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