Wednesday, March 01, 2017

O VOO DOS GANSOS
(Luz... Porto) 
Para mamãe



Carminho contemplava o mar que banhava sua cidade. Naquele trecho, havia seixos, conchas. A areia não era lisa. Ela sonhava em cruzá-lo a nado e em pegar um navio que a levasse para além das montanhas.
Ela não sabia muita geografia ainda, mas o pai a presenteara com um livro lindo de contos de fada nórdicos. Ela se imaginava nos fiordes, nas florestas geladas, cercada por fadas, dríades, elfos e gnomos.
Queria ser duas coisas na vida: médica como o pai, e violinista profissional. Atrair pessoas para si, como o fizera o Flautista de Hamelin. Adoraria que as árvores balançassem e que o vento soprasse conforme as notas fossem sendo suavemente retiradas das cordas com o arco.
Médica, a mãe não a deixaria ser. "Não é coisa de moça de família. Quem vai querer casar com uma médica?" Violinista era outra coisa. A mãe apreciava muito a boa música e lhe contratava professoras que a ensinassem, pensando, futuramente, em uma Escola de Música na Capital.
Dona de uma imaginação fértil, ou dotada de habilidades mediúnicas, coisa que a mãe, católica tradicional até a medula, jamais aceitaria, a menina via e sentia coisas estranhas. Por vezes se isolava na natureza para ouvir a música das estrelas, fosse isso o que fosse, ou para entrar em contato com seus "amigos imaginários."
Em uma tarde de outono, sentou-se à beira d'água e ousou arriscar uns passos dentro da água. Deu pulinhos de alegria. Estava fria, como gostava, e uma corrente elétrica acordou-lhe os sentidos. Viu a água parar suas obdulações por um momento para refletir uma cena em um suposto futuro. Viu uma velhinha em uma cama branca, diferente de tudo o que poderia imaginar. Saíam tubos de seu corpo. A senhora estava muito cansada e queria partir. Três mulheres a cercavam. A mais nova entregava-lhe escondida uma pena de ganso e dizia "Para você fazer seu primeiro voo. Como nos contos de fada. Vá. Não tenha medo". E a pena era colocada sob o travesseiro. Atrás da cama, em outro plano, via a mãe, o pai, a irmã, um homem que a olhava com amor e anjos que a aguardavam. Ouviu-se um apito longo e agudo e a paciente voou.
Carminho, um tanto perplexa, saiu correndo da água. Levaria uma bronca da mãe que, em casa, cuidava da irmã. As tias que a acompanhavam eram mais lenientes e permitiam que a pequena fizesse suas travessuras.
A menina foi crescendo, mas aquele cantinho era seu. Era nele que chorava suas mágoas, que contava seus segredos. Tornou-se mulher. Violinista também. Carreira? Foi deixada de lado. A mãe tivera uma caçula com sequelas do parto. Um pouquinho de falta de oxigenação na hora do parto selou-lhe o destino. Para sempre dependente. O dinheiro que os pais economizaram foi pelo ralo. Buscaram tratamentos. Havia poucos.
Começaram a trabalhar cedo, Carminho e sua irmã, Olga. Carminho conheceu um rapaz bem mais velho, vindo de outra cidade. Não era rico, mas trabalhador e honesto. Tinha muito carinho pela família da namorada. Casaram-se. Ela parou de dar aulas e concertos. Tornou-se uma dona de casa sem muito talento e uma mãe dedicada às filhas.
Os anos se passaram, a Vida foi deixando suas marcas, trazendo-lhe netos, quatro. Mudou-se para outra cidade onde pode finalmente nadar em paz. Uns morreram. Muitos. Outros ficaram. Ela cuidava da irmã caçula, Águeda. As filhas se casaram ou foram morar sozinhas. Guardou o livro de Contos de Fada Nórdicos a sete chaves. Só o mostrou à Clara, sua caçula, curiosa como o quê.
Sem que se desse conta, estava em uma cama de hospital, sofrendo. Estava entubada, cansada. O coração velho parara, mas fora "ressuscitada". As filhas e netos a visitavam. Falavam, faziam perguntas que ela não tinha como responder. Rezavam, cantavam. Ela só queria ir embora, descansar. Deus não tinha piedade? Sentiu que a caçula colocava algo sob o travesseiro. Uma pena? Uma pluma? Ouviu as palavras "voar", "para sempre". Era um dos contos! Não tinha como virar a cabeça. Percebeu que os pais, o marido, Olga e outros a aguardavam. Conseguiu mexer o braço. Algo se desconectou.As máquinas apitaram. Voou puxada pelos três gansos mágicos rumo à eternidade.

*Imagem de Marilia Fayh

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