Saturday, November 07, 2015
KORÉ
(Luz... Porto)
Tudo começou numa tarde enquanto eu colhia flores... Não.
Não é verdade. Tudo começou muito, muito antes. Começou, eu acho, quando Gaia,
minha bisavó, cansada de ser violentada todas as noites por Urano, seu irmão,
pediu a Chronos que a livrasse do suplício. O filho dileto, munido de uma
foice, escondeu-se e, quando o pai estava prestes a possuir a mãe, castrou-o.
Do sangue jorrado nasceram Afrodite e as Erínias. Beleza e Amor, por um lado;
Discórdia e Vingança, por outro. Belo par...
Seguiu-se assim. Chronos desposou Rhea, sua irmã, mas
sabedor do que lhe reservava o Destino, ser destronado por um filho, devorava a
todos que a esposa dava à luz. Revoltada, Rhea decide enganá-lo e quando nasce
Zeus, o caçula, dá ao marido uma pedra em lugar da criança. Voraz, o deus nem
percebe a diferença. Mais tarde, já criado, Zeus enfrenta Chronos, obrigando-o
a vomitar seus irmãos. Após uma batalha longa e sangrenta, os filhos vencem o
pai. Os deuses dividem o mundo em três partes. A Zeus caberia o mundo, tal como
o vemos. As planícies, as montanhas. Poseidon fica com o mar e os oceanos. A
Hades cabe o mundo subterrâneo.
Quem de longe vê o Monte Olimpo fica fascinado com sua
beleza e almeja fazer parte desse cortejo. Cortejo de sangue, violência, intrigas,
traições. Os mortais sabem disso. Em parte. Os de maior conhecimento
adquiriram-no a duras penas, como Tirésias, cegado por Atena por tê-la visto,
por acaso, se banhando. Com remorsos a deusa lhe concedeu o dom da visão
interior e do passado e futuro. Cassandra, premiada com o dom da profecia, foi
considerada louca e mortal algum a ouviria, como castigo por ter se negado aos
desejos de Apolo.
Nasci do casamento entre Deméter e Zeus, antes de ele ter se
unido a Hera. Vivia com minha mãe nos campos, tranquila. Minha beleza, porém,
despertou a cobiça de meus irmãos, que ofereceram o que tinham de melhor em
troca da minha mão. A todos minha mãe recusou. Para resguardar-me, trancou-me
em uma gruta subterrânea, protegida por serpentes. Mesmo assim, dizem que meu
pai me possuiu e dei-lhe dois filhos. Não me lembro.
Quando eu colhia flores, era conhecida por Koré, moça
virgem. Ignorando ser tão cobiçada, corria pelos campos até que um dia uma
linda flor, um narciso, me atraiu e eu me separei de minhas amigas. Fui tragada
pela terra, que abria sua fauce atemorizante e braços fortes me agarraram
enquanto clamava por ajuda.
Silêncio. Escuridão. Perfumes diferentes. Lembro-me de
papoulas. Adormeci por três dias. Acordei com um homem alto, moreno, de beleza
séria, que fitava minha nudez. Tentei me cobrir. Ele fez sinal para que não o
fizesse. O seu corpo, os seus olhos exalavam desejo, mas ele era contido. A seu
lado, um estranho cão. A horrenda criatura tricéfala não me era hostil e não
tive medo dela. Despachando o cão, sentou-se a meu lado e ofereceu-me uma
fruta. Comi seis sementes da suculenta romã de tons dourados. Ele também. Seu
membro latejava e, como hipnotizada, entreguei-me a ele. Ele me possuiu muitas
vezes, de várias maneiras. O desejo era violento, mas ele agia e me acariciava
de modo firme e suave. Estava em êxtase. Adormecemos exaustos.
A luz prateada vinha de uma espécie de lua. Contemplei o
rosto adormecido e vi que não era um homem, mas um deus. Um deus que não pediu
minha mão, mas meu corpo. O deus que faltava. Hades, meu tio, Senhor dos
Infernos. Não conversamos muito. Ele me apresentou o seu reino, “nosso reino”,
completara com um meio-sorriso. Ele quase não sorria e guardava para mim os poucos
sorrisos que descortinavam dentes brancos e bonitos. Não perguntei a razão do “nosso”.
Certas coisas uma mulher não pergunta a seu homem.
A paisagem não era das mais bonitas. Havia um rio, o Letes.
O rio do esquecimento. Um velho barqueiro cobrava das pobres almas um óbulo
para transportá-las. Havia a região dos suplícios eternos, que me desagradava
profundamente. Queria ver a pena de Tântalo e a de Sísifo transmutadas, mas Hades me olhava
com um ar de reprovação e negava. “Há um equilíbrio no Universo. Frágil. Sem
ele, voltamos ao Caos”. Eu calava. E circulava por outros cantos. Meus
aposentos eram enormes e havia um lindo jardim subterrâneo com flores e árvores
únicas. Muito acima, no que chamaríamos de “o topo” ou o “céu dos infernos”,
viam-se raízes, plantas pelo avesso. Algumas aves me levavam até lá e eu as
tocava com minhas mãos.
Dormia muito. Ganhara de presente um gato egípcio, sim,
incrédulos mortais, as divindades se comunicam, chamado Osíris. Ele era meu
companheiro e guardião. Ele me conduzia no mundo dos sonhos em que passava
horas mergulhada. Nesse mundo eu via o passado, o presente e o futuro. Não
podia falar sobre isso com quer que fosse, a menos com o Osíris, que me
respondia com seu olhar.
Pois foi no mar tranquilo de seus olhos de um azul profundo
que soube do que acontecia na superfície. Minha mãe procurando por mim. O
inverno e a seca que castigavam os campos. Zeus tentando interceder. Minha mãe,
um molambo, vagando errática pelos quatro cantos da terra. A terra desolada.
Risco de Caos. Apiedei-me.
Fui ao salão principal conversar com meu marido. Encontro
Hermes, meu irmão e ex pretendente à minha mão. Ofertara-me o caduceu em troca.
Mirei os seus pés alados e sorri por dentro. Não me consultaram. Zeus suplicava
ao irmão que me deixasse partir. Impassível, o Senhor do Mundo Subterrâneo
disse: “Nenhum ser vivo pode entrar com seu corpo no Inferno e sair vivo se
tiver comido ou bebido algo daqui. Vejamos se ela o fez”. Enrubesci. O
argumento era primário. Eu não era um “ser vivo” qualquer. Era uma deusa. Filha
de deuses olímpicos. Duas vezes neta de Rhea e Chronos. A discussão prosseguiu
e por conta das seis sementes de romã tive o meu destino selado: metade do ano
com minha mãe, metade com meu marido. Contrariado, mas para evitar um
desequilíbrio maior, ele concordou.
Despedíamo-nos sem nos olhar nos olhos. As lágrimas
escorriam para dentro. Osíris ficava à minha espera. Eu subia, era recebida por
minha mãe, com muita festa. À minha chegada, tudo florescia, o calor voltava,
os campos se alegravam. Era grande a festa entre os mortais. Faziam
sacrifícios, festivais. Era bonito. Adornavam-me a fronte com grinaldas de
flores multicoloridas. Eu sorria, abraçava o trigo, como a minha mãe fazia. Dançava
com minhas amigas de antes. Ártemis se juntava a nós e, por vezes, a própria
Atena nos visitava. Apolo trazia o carro de Hélio e me contemplava. Ele, outro
irmão que também pedira a minha mão, lançava ainda olhares de cobiça que eu
percebia, de soslaio.
Pouco me deixavam dormir e, sem Osíris a me guiar, perdia-me
nos sonhos e eles eram sem graça. Ninguém, nem meu pai, nem minha mãe, nem meus
irmãos ou irmãs, nem as ninfas, as dríades, as hemadríades, olhavam de verdade
para mim. Ninguém fitava o fundo de meus olhos negros. Eu não era mais Koré.
Chamava-me Perséfone, “aquela que destrói a luz”. Não destruía nada. Apenas
cortava o último fio de cabelo dos mortais para que eles pudessem descansar no
Hades. Simbolicamente, eu lhes apresentava outra luz, que não a do sol. Não era mais uma menina nem uma adolescente.
Era uma mulher cujo corpo se consumia em brasas pela distância do seu homem.
Era uma rainha em exílio, clamando por seu rei.
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