Meu pai também estava vivo e saía todos os dias antes das seis para trabalhar. Corrijo. A partir da minha quinta série, ele saía um pouco mais tarde para me acordar e me servir o desjejum. Chá, pão e manteiga. Às seis e um quarto, lá se ia ele ladeira abaixo pegar o ônibus, a barca para só retornar doze horas depois, trazendo sempre o jornal do dia e algum mimo em forma de leitura para mim, fosse um gibi, fosse alguma coleção que ele julgasse importante.
O bule talvez tenha sido o mesmo durante minha infância e adolescência. Se não o fora, não pode ter havido mais do que três. Minha avó, sem que eu pudesse suspeitar ou intuir, praticava o desapego e a conservação. Mesmo com as coisas do meu avô. Com que surpresa e ciúme deparei-me com a obra completa de Proust, com a assinatura "Carlos Pimenta Velloso" na casa de meu tio, irmão dela! Interrogado, o tio disse que fora presente dela enquanto o marido ainda estava vivo.
Naquela casa ampla, de poucos móveis, poucos objetos, a maioria dos quais religiosos, não havia espaço para o excesso. Os armários de madeira lustrosa nunca estavam cheios, muito menos a cômoda. No armário do banheiro, o essencial. Duas escovas de dente, fio dental, palito dental, um pote com algodão, um vidro de iodo e um tubo de sénophile. Ocasionalmente, um outro de omcilon.
Fazendo conjunto com o bule, duas canequinhas de café e duas grandes para leite. Havia outras duas panelinhas de ágata também. Tudo azul. De um azul intenso, forte, sem ser o marinho.
Perguntava-me o porquê de o material se chamar ágata. Era um nome próprio e eu supunha que fosse uma homenagem à minha tataravó Agathe. Sei que, com ou sem homenagem, nem as panelas, tampouco as canecas, duravam na minha casa. Meu pai reclamava:"São essas empregadas que sua mãe arranja. Ela não sabe dar ordens."
De fato, na cozinha de minha avó não entravam bombril nem detergente. Apenas esponja comum e sabão de coco. E tudo brilhava e cheirava à limpeza. O café, que eu jamais provara, nunca tomei café, era coado em um artefato de madeira feito por meu avô, uma espécie de tripé. Pintado de azul. (Talvez a insistência no azul celeste fosse uma referência à faixa da Virgem, capaz de interceder por eles naquela vida de que não se queixavam, mas que era tão sofrida, por várias razões.) Nele minha avó encaixava o coador de pano feito e bordado por ela. Não sou fã do cheiro, mas o café da minha avó, servido tarde, após a missa e a comunhão, era o marco de que a manhã chegara. Por sinal, minhas manhãs sempre chegaram tarde.
Então a vida envelheceu, crescemos, vieram doenças e obstáculos. Um fêmur quebrado limitou-a e as missas já não eram diárias. A comida não era mais feita por ela, mas pela empregada de mamãe que limpava as panelas, amassando-as e riscando-lhes a superfície com a esponja de aço. Foi-se o bule, foram-se as canecas. Foi-se a avó. Foi-se o pai. Restou eu. Por vezes pego-me a imaginar meu pai me chamando e o café sendo passado no coador de pano bordado. Talvez assim chegassem novamente as manhãs...
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