Saturday, January 28, 2006


Ms P.
(Luz... Porto)
Nunca me esquecerei de meus primeiros dias em St Michael's. Era uma das melhores escolas particulares da região. Meus pais não tiveram a chance de continuar seus estudos e por isso eram tão preocupados comigo.
Eu era apenas uma aluna de quinta série, assustada, tentando me adaptar a um mundo no qual eu jamais me encaixaria. Eu dividia minhas acomodações com duas outras meninas: Cecily e Heather. Elas pertenciam à classe alta, mas eram tão legais quanto garotas mimadas de classe alta conseguiam ser.
O semestre apenas começara e estávamos todas ansiosas em conhecer Ms Peabody. Elegante e sobriamente trajada, os cabelos pintados de castanho-claro sempre em um coque, ela fascinava seus alunos. Primeiro por ser tão segura de si; ela jamais faria algo inadequado. Depois, por ser uma rígida professora de Latim e Latim não é tão fácil, como vocês devem saber.
Ela era uma solteirona de uns cinqüenta e tantos anos que possuía uma casinha bem arrumada, cheirando a lavanda onde ela residia com uma irmã mais velha. Ela não cometia erros, sua mesa e estante estavam sempre impecáveis. Ela nunca se atrasava, nunca adoecia, nunca estava triste. Havia algo nela que me fazia pensar em Mrs Danvers, a perversa governanta do romance REBECCA, de Daphne Du Maurier.
Por volta da sexta-feira, fomos apresentados à nova professora de Inglês: Ms Peacock. Algumas garotas disseram que o nome lhe caía como uma luva, mas nem todas concordavam com isto. Ela era um pouquinho tímida e tinha o sorriso mais suave que já vi. Ela nos ouvia com toda a atenção a despeito das tolices que falávamos. Seus olhos negros brilhavam e ela achava um jeito de nos mostrar a importância e a relevância de nossos pensamentos e de nossa linha de raciocínio, mesmo que estivesse errada.
Acredito que tenha sido um choque para a equipe conservadora de St Michael's trabalhar com Ms Peacock. Ela se vestia de um modo extravagante e sua maquiagem nos parecia exótica. Seu batom vermelho acentuava a alvura de sua pele e ela passava por nós como uma Branca de Neve moderna.
Comentava-se, à boca pequena, que durante as reuniões pedagógicas ela tinha um ar completamente distraído e ausente, mas que, do nada, ela tirava uma caneta de sua bolsa, pegava uma folha de papel e mergulhava numa escrita frenética. Então ela esboçava um sorriso e suspirava profundamente como se a reunião tivesse sido de importância vital para sua vida. (Só muito mais tarde ela me contou das reuniões. Dirigiu-se a uma gaveta de onde tirou pedaços de papel nos quais rascunhara algum poema ou esboçara algum desenho).
Ms Peabody, que se julgava a Paladina da Justiça, um modelo de imparcialidade e neutralidade, tratava Ms Peacock de forma polida, mas às vezes demonstrava tal entusiasmo pela nova colega que qualquer um que prestasse um pouco de atenção veria que Ms Peabody, de fato, não a suportava. Ms Peacock, por sua vez, mantinha-se quieta e reservada, como se pudesse intuir o desprezo e a rejeição da colega.
Suponho que o fato de algumas meninas insuportáveis, insufladas por professoras invejosas, terem lhe dado a alcunha de "Ms Nobody" esteja relacionado à capacidade desta de se tornar tão invisível quanto um camaleão na presença da velha mestra.
Eu odiava quando elas faziam isso. Foi pouco antes de sua morte que me dei conta da inveja suscitada por Ms Peacock. Inveja? vocês me perguntarão. Sim. Ms Peacock era jovem e bonita a seu modo. Bastante inteligente e sagaz. Apesar de sua aparência frágil, ela só fazia o que lhe dava na telha. Ela adorava lecionar, mas suas aulas tinham um toque seu, muito particular. Ela apreciava arte, cinema, música, poesia e ela ia aos shows, palestras e espetáculos que bem entendesse. Ela era um tanto atraente e nos seduzia de tal forma que quase todas acabávamos por gostar das suas aulas. "O mais importante que vocês aprendem na escola é que a escola não é a coisa mais importante do mundo. A vida já basta por si só e quanto mais vocês trabalharem e abrirem suas mentes e seus corações, maior acesso terão a ela.", Ms Peacock costumava dizer.
Terminei meu Segundo Grau, fiz faculdade e nunca mais voltei a pensar em St Michael's até reencontrar Cecily, minha colega de quarto. "Oi! Como vão as coisas?", ela perguntou. "Bem.", eu respondi. "Você se lembra da Ms Nobody? Bom, ela acaba de ser demitida de St Michael's." Claro que eu me lembrava dela. Muito chocada com a notícia, comentei "Mas ela não trabalhava lá há um tempão?". "Dezesseis anos." "Por que a demissão?", indaguei. "A nova chefe disse que ela não tinha o perfil da instituição. Que ela não tinha vivacidade suficiente e que suas aulas tinham um ritmo esquisito. Ela não servia para uma escola de tal porte. Oh, lá vem o meu motorista e é difícil parar aqui. Bom te ver. Até qualquer hora." "Adeus", acenei mecanicamente. Compreendi naquele momento que o que restara em mim de St Michael's era Ms Peacock, seus comentários, sua gentileza, sua alegria de viver. O que teria sido feito dela?
Anos mais tarde fui ao funeral de Ms Peabody. Ela tinha morrido pacificamente aos noventa e três anos de idade. Pessoas da mídia, políticos, o corpo docente de St Michael's, até o prefeito estava presente. A Marcha Fúnebre de Chopin foi executada por alguns ex-alunos. Todos sérios e circunspectos. Curiosamente ninguém chorava. Percebi então uma figura de luto. Era uma mulher de negro. Rezava em voz baixa, próxima ao caixão e as lágrimas que vertia eram sinceras. Ela estava realmente comovida com a morte de Ms Peabody. Num relance a reconheci. Era Ms Peacock, com suas unhas vermelhas e um terço na mão. Ela chorava baixinho, mas de súbito a perdi de vista. Ela se retirara antes do enterro propriamente dito.
E aqui voltei novamente a este cemitério onde tantos amigos e parentes repousam. Em paz? eu me perguntava. Eu me aproximei do caixão onde estava o corpo desta mulher notável que partia com oitenta e tantos anos. Seu cabelo se tornara grisalho, por fim, mas parte dele permanecia negro. Ela repousava em um leito de rosas vermelhas, amarelas e brancas. Alguém pusera uma orquídea roxa, sua flor favorita, entre as mãos. Vestiram-na com um de seus trajes coloridos e ela calçava sapatos de cetim vermelho. As altas velas ao redor do caixão rescendiam levemente a almíscar. Uma jovem tocava músicas no violino. Danças Ciganas, se não me engano.
O padre veio, fez suas orações e todos fomos para fora da capela. Enquanto os coveiros faziam seu trabalho e o esquife descia, algumas pessoas começaram a cantar músicas populares de que ela gostava. Outras puseram-se a recitar versos e algumas meninas dançaram "Danças Circulares". Eu joguei uma rosa sobre o caixão e muitos fizeram o mesmo. Então uma mulher de uns sessenta anos se aproximou, abriu um baú e jogou alguns papéis amarelados para serem enterrados com ela. "Seus poemas!", pensei. Foi aí que me dei conta de que ela descansaria em paz. Confesso que a invejei nessa hora.

Wednesday, January 25, 2006


Cântico dos Cânticos
(Luz... Porto)
Jardim de delícias...
Minha pele na tua pele.
Minha língua delineia teus contornos,
Tuas saliências, tuas reentrâncias.
É mel o que escorre de ti;
É leite aquilo com que cobres minha nudez.
Teu suor é a água benta
Com que purificas meu corpo
E absolves minha alma.


Varal de Lágrimas
(Luz... Porto)
Devaneios às quatro da manhã.
Divagam meus pensamentos.
Devagar me levanto,
Demoro-me à beira do tanque:
Lavar me acalma,
Limpa-me a alma.
Lentamente torço as peças e as penduro.
Delineio um quadro de Volpi.
As bandeirinhas coloridas alegram a madrugada.
Disparo vespas contra o teu retrato
Que me sorri, irônico e impassível.
Dispo-me novamente.
Deito-me e abraço o teu travesseiro.
Não quero me indispor com as lembranças.