Friday, June 13, 2014

O POTE DE LEITE
(Luz... Porto)


Nascera Laura. Fora assim batizada pelos pais. Gostava do nome. A musa dos sonetos de Petrarca. Impunha respeito isso.  O pai sempre recitava para ela A Assunção de Laura, do Il Canzoniere.
Mas a mãe, fã de Lobato, costumava ler histórias para que a filha adormecesse em paz. E tome de Reinações, de Viagem ao Céu, de Caçadas de Pedrinho! Uma noite, estava prestes a adormecer, naquele intervalo gostoso entre a vigília e o sono enquanto a mãe lhe contava a saga malsucedida de Laura e o Pote de Leite. Para quê? A garota acordou aos prantos. A mãe não entendeu nada.  Uma Laura inconsolável foi dormir na cama dos pais.
Laura, musa do humanista e Pai da Renascença, viu-se confinada a uma camponesa sem recursos que ia à feira levando um pote de leite para vender. Essa Laura de chinelas era hábil em matemática, mas distraída para as artimanhas da vida. No caminho para a feira, entabulava cálculos sobre o quanto apuraria com a venda e como poderia investir o dinheiro aplicado. Já estava no sonho da casa própria; sim, pois que os campesinos também sonham, quando não viu a pedra drummondiana. Tropeçou, caiu e a jarra se espatifou, indo leite para todo o lado. Seria essa a origem da expressão "Não adianta chorar sobre o leite derramado?" 
Bem, era tarde demais. A nossa Laura já incorporara para si a sina da camponesa. Cresceu, estudou, se formou, teve um bom emprego. Mas, quem olhasse nos seus olhos verdes e translúcidos, veria, no fundo daquele mar de águas límpidas, os arrecifes contra os quais navios poderiam se chocar. Era o pote de leite.
Laura fez muitos planos, tanto na vida prática quanto no amor. Segundo ela, todos se espatifaram. Não chegou a gerente, não ascendeu, como sua homônima humanista, a cargos de comando. Muito menos a um céu de onde esperaria o Amado.  O apartamento, comprado na planta, viera ao chão no meio da construção, em consequência de uma chuva muito forte. "Uma catástrofe natural", dissera o construtor que se evadiu para Miami, para o raio -que-o-parta, com a família do dia para a noite. Quando enfim saiu a indenização, só pode adquirir um de sala e quarto. Não tão pequeno assim, mas para quem se planejara e investira as economias em um de três dormitórios...
Não pensem que ela fosse megalômana. Não. Ela estava noiva e pensava em casamento e filhos. Haveria de precisar de um quarto para o rebento e de um para escritório. O noivo, contador, também trabalhava em casa. Mas o noivo não primou pela paciência, não participou das manifestações contra a firma e trocou essa Laura engajada por uma Beatriz mais angelical e herdeira.
Um pote, um pote duplo, se estatelara contra o canteiro das obras mal concluídas. E outros foram caindo em sequência. Laura considerava sua vida como uma sucessão de potes partidos. E o leite tornava-se escasso, já que a cabra Amalteia só alimentara Zeus, negando as fartas tetas aos desvalidos mortais.
Fez análise, claro. E estava indo bem. Transferência para cá, contra-transferência para lá. Até que um dia um carro dirigido por um filhinho de papai embriagado fechou um ônibus e o motorista acabou perdendo a direção. Para evitar desastre pior, jogou o veículo sobre uma calçada praticamente vazia. De um prediozinho de quatro andares, descia o analista, após uma aula de alemão. Não sobreviveu, chegando ao hospital já sem vida. 
No enterro, a que Laura fez questão de comparecer, traindo talvez a distância que se exige entre o analista e o analisando, ela só via enormes galões descendo ao ventre da terra e sorria nervosa, imaginando que um campo de copos de leite haveria de nascer desse solo. E em sua cabeça só conseguia ouvir Vaca Profana do Caetano.
Instalada em seu, finalmente próprio e quitado, quarto e sala, Laura não se apercebeu que chegara o dia 12 de junho. O namorado atual estava ausente, em viagem de negócios ao Nordeste e não era do tipo romântico. Nem flores costumava mandar. Nem um cartão virtual.
Mas Santo Antônio, o santo casamenteiro, não, Laura não acreditava nessas coisas, resolveu pregar-lhe uma peça. Qual Scrooge, Laura foi visitada pelos três espíritos do Valentine's. O do passado, o do presente e o do futuro. Não necessariamente na mesma ordem.
Pela manhã, um rapaz da filial de Brasília, que ela não conhecia pessoalmente, só de emails da firma, mandou-lhe um cartão virtual, muito bonito. Uma paisagem campestre, legenda sobre o amor e a mensagem "Espero que você tenha um ótimo dia dos namorados". Tomada por um impulso, ela ligou , eles conversaram e ele insinuou outros interesses. Achara a foto do crachá bonita. Laura riu e ele foi cogitando um possível encontro. Prestes a aceitar, apesar de não parecer muito sensato, nossa camponesa foi informada de que o rapaz ainda se recuperava de uma intervenção que o debilitara. "Quem sabe no ano que vem poderemos contemplar juntos um pôr-do-sol em Brasília. O céu daqui , imortalizado por Toninho Horta, é uma beleza..." Laura se despediu polida. "Quem sabe?" "Ano que vem?" Mais um pote? Não.
À tarde, seu antigo noivo ligou. Ela não esperava. Ele nunca ligava. Como descobrira o telefone? Uma amiga em comum. Amiga da onça. Não queria perguntar da doce Beatriz, a da Comédia. Entendeu que eles haviam se separado. Percebeu então a razão de toda aquela gentileza e saudade súbita. Ele precisava dela, do seu espírito prático. Quis xingá-lo, mandá-lo para um daqueles lugares, mas se calou. No entanto, a curiosidade falou mais alto e ela perguntou se ele sabia a data que era. Prontamente ele disse que sim, que pensara nela. E começou a recitar Pessoa, um dos poetas preferidos de Laura. Pessoa não. Álvaro de Campos:

Meu amor perdido, não te choro mais, que eu não te perdi! 
Porque posso perder-te na rua, mas não posso perder-te no ser, 
Que o ser é o mesmo em ti e em mim. 

Muito é ausência, nada é perda! 
Todos os mortos — gente, dias, desejos, 
Amores, ódios, dores, alegrias — 
Todos estão apenas em outro continente... 
Chegará a vez de eu partir e ir vê-los. 
De se reunir a família e os amantes e os amigos 
Em abstrato, em real, em perfeito 
Em definitivo e divino. 

Reunir-me-ei em vida e morte 
Aos sonhos que não realizei 
Darei os beijos nunca dados, 
Receberei os sorrisos, que me negaram, 
Terei em forma de alegria as dores que tive... 

Laura ouviu sem mexer um músculo. Ele disse que essa passagem fazia com que ele se lembrasse dela. Marcaram um encontro para o fim de semana seguinte. Ela percebeu que ele queria que ela fizesse um projeto para ele. Filho da mãe pensou. Já era um pote quebrado mesmo. Topou visitá-lo. Decidiu pagar para ver a proposta indecente que viria. E se riu por dentro.
À noite, o namorado ligou. Laura já estava adormecida, Atendeu sonolenta. Pasmem! Ele falou no Dia dos Namorados e convidou-a para jantar assim que retornasse. Precisavam conversar, definir a situação. Mencionou um anel. Sugeriu uma mudança de apartamento. O tempo passava ele gostaria de ter filhos e dali a uns anos, Laura já não estaria em idade adequada. Dois, pois ser filho único era muito chato. Laura jura que o ouviu mencionar uma lua-de-mel. Quem sabe, depois, uma casa na praia... 
Apavorada, Laura bateu o telefone e o desligou. Tirou-o da tomada. Sem ter a cama dos pais para chorar, foi até a cozinha. Pegou uma tesoura e abriu, uma a uma, as embalagens longa vida do leite que ela comprava em caixa grande por economia. Despejou-os um a um no ralo da pia. Observou impiedosa a concretização da metáfora que adotara para a sua vida. Lavou a cuba, jogou as embalagens na lixeira. Resolveu cortar drasticamente os laticínios de sua vida. E dormiu em paz.