HORA DO ANGELUS II
(Luz... Porto)
À Norma
Mudáramos para a casa nova
fazia quase um ano. Nova é modo de dizer. A casa era antiga e o telhado estava
sempre a precisar de reparos. Mudáramos de estado, para ser mais exata. Busca
por melhores condições de vida.
Minha mãe pouco saía. A
saúde frágil abalara-se mais após meu nascimento. Não me diziam, mas eu
supunha. Meus irmãos, bem mais velhos que eu, e meu pai, cercavam-na de
cuidados.
Morávamos em uma ladeira
que dava para um morro. Ficava imaginando o tamanho do morro, a extensão, a
altura, a vista. Naqueles dias o saneamento era precário, não havia esgoto,
água encanada e a iluminação era escassa. Um poste aqui, outro, acolá. Mamãe,
sempre solícita, procurava ajudar a todos como podia. Uma das formas era
cedendo água. Todos os dias formava-se uma fila de moradores com suas latas na
cabeça em nosso tanque. Não havia perigo. Conversávamos todos e dormíamos com o
portão aberto.
Não deve ter sido difícil
arranjar uma empregada. Senhorinha veio para nós recomendada por uma vizinha,
Dona Vera, a costureira do bairro. Não era exatamente simpática. Diziam que
tinha “gênio”. Era eficiente e muito devotada à minha mãe e a mim. Não fazia
parte do serviço cuidar de criança, mas eu tinha loucura por ela e ela por mim.
Era ela quem me levava ao parquinho, à praia, onde construíamos castelos de
areia. Era eu quem a acompanhava à mercearia, ao açougue, à padaria.
Embora não conseguisse
frequentar regularmente as missas, mamãe tinha uma amiga de igreja, Marisa, mãe
de uma menina da mesma idade que eu tinha e com quem eu brincava, Daniela.
Marisa era casada com um médico que doava amostras de remédios para mamãe.
Amostras eram fáceis naqueles dias. Com isso, mamãe atendia, a seu modo, os
desvalidos do morro. Ela sempre tinha material de primeiros socorros.
Pensava-lhes as feridas, cuidava das queimaduras, distribuía analgésicos,
vermífugos, vitaminas, e, em casos extremos, um ou outro antibiótico. Não sem
antes consultar o Dr. Macedo, marido de Marisa, por telefone.
Era triste ver mamãe, tão
boa e desprendida, passar a maior parte do tempo presa ao leito. Quando tinha
forças, ela cuidava do jardim, plantado por ela. Eu a ajudava com meu
regadorzinho vermelho. Fazia também mimos para nós na cozinha. Pão de minuto,
brigadeiro, bolos e broas. Sem mencionar sua batata frita imbatível e suas
sopas.
Mesmo com suas
dificuldades, mamãe me chamava para ouvir histórias. Ela lia uns livros
enormes, de alguma coleção que que se perdeu no tempo. Outras vezes,
desenhávamos ou brincávamos de boneca. A agulha não era o seu forte, mas ela
ensaiava algumas roupinhas com retalhos que recebia de D. Vera.
Uma tarde de outono,
enquanto eu estava perdida olhando o céu,
surpreendi-me ao ver minha mãe vestida para sair. Camisa, calça far-west e
galochas. Os cabelos cor de mel, presos por pentes atrás das orelhas, ela
estava linda! Trocou minha roupa, calçou-me galochas e, tomando-me pelas mãos
suaves, disse-me: “Vamos!”. Eu perguntei: “Aonde?” “Surpresa! Você verá.”
Fomos subindo lentamente a
ladeira, Chegamos ao morro. Entendi a razão das galochas: lama. Muita lama e
uma vegetação esquisita, alta em alguns pontos. Os moradores surpresos
cumprimentavam-na: “Boa tarde, D. Lia”. Continuamos a subir, subir. Os barracos
se escasseavam. Veio um menino alto, magro e perguntou se tínhamos algo para
comer. Abri minha lancheira e dei-lhe meus dois pacotes de Mirabel de
chocolate, Ele devorou tudo. Dei-lhe também a vitamina de banana que eu levava
na garrafinha. Sorrindo, ele agradeceu e, afastando-se, disse num largo
sorriso: “Sou o Edgar.”
Chegamos ao topo um pouco
ofegantes. Havia begônias em um canteiro mal-feito. Alguém cuidava delas. Mamãe
disse: “Veja”. Eu olhei. Olhei e vi. Um cartão postal da cidade. A praia,
outros morros, pássaros, o mar sem fim. Dei pulinhos de alegria. Minha mãe
apontou o sol. Ele estava incandescente. Senti a mão de Deus a nos tocar. Aos
poucos ele começava a se esconder por trás dos montes, como se fosse mergulhar
no mar. “É o crepúsculo. O pôr-do-sol, Ana. Um dos momentos mais lindos do dia.”
Antes que o sol se pusesse
de vez, ela tomou-me pelo braço. “Temos de voltar antes que anoiteça”. Fomos
voltando. Mais adiante, um Edgar já alimentado disse: “Vão descer? Eu acompanho”.
Foi melhor. Ele conhecia bem o caminho. Já no final as poucas lâmpadas de
mercúrio foram se acendendo, fracas. Chegamos a casa antes de meu pai e meus
irmãos regressarem. Deixamos as galochas no jardim e fomos tomar banho.
“É o nosso segredo. Não
conte para ninguém. Eles não vão gostar e não poderemos voltar.” “Um segredo! Agora
eu tinha um segredo com a minha mãe!” Até
então só contara meus segredos a Senhorinha, que os guardava a sete chaves.”
Naquela noite sonhei que
íamos todos a um piquenique em um parque grande, verde, com um lago. Mamãe
estava bem, bem vestida. João e Carlos, meus irmãos, usavam gravatas borboleta
e suspensórios. Meu pai trajava um terno. Senhorinha, Edgar, Daniela e ouras
tantas crianças com quem eu brincava, participavam também. Divertimo-nos muito
e tudo acabou com uma enorme chuva.
Apesar de seu coração
fraco, mamãe conseguiu repetir a façanha algumas vezes mais. Eu não resistia e
colhia begônias para enfeitar o Sagrado Coração de Maria e o Sagrado Coração de
Jesus que protegiam nossa casa em uma das paredes da sala.
Hoje, aniversário de morte
de minha mãe, que nem me viu formada como tanto queria, lembrei-me das
begônias. Mudáramos novamente logo após sua morte. Senhorinha continuou conosco
até o nascimento de meu segundo filho, quando foi juntar-se à mamãe. Meu pai
resistira até mais de noventa. Meus irmãos, perdi-os há pouco.
Há muito não voltava ao
antigo bairro. Senti uma vontade imensa de oferecer begônias colhidas daquele
jardim para minha mãe. De relembrá-la de
nosso “segredo”. Peguei um táxi, saltei e comecei a subir a ladeira. Já no
início do morro, fui abordada por adolescentes, meninos que podiam ser meus
netos, armados até os dentes. Eu não podia subir. Ordens do chefe da boca. Com
minhas retinas cansadas -mais de setenta anos podem pesar- vi como tudo havia
mudado. Respondi que me levassem ao tal “chefe”. Confabularam e me disseram que
o chefe não atenderia uma velha.
Vejo, então, um senhor
alto, de mais idade, se aproximar. Eles baixaram as armas. O tal senhor era
respeitado. Contei-lhe minha história. Ele sorriu e me disse: “Levo a senhora
lá. Não precisa ter medo.” Subimos, eu com uma certa dificuldade. Paramos em
uma birosca, ele me ofereceu um suco e um sanduíche. “Aqui é limpinho,
garantiu.” Comemos e conversamos um pouco. Por fim, chegamos ao topo. O
canteiro, bem cuidado, continuava lá. Era um oásis em meio à quase guerra civil
que vivíamos. Com surpreendente delicadeza, ele colheu um buquê improvisado. “Leve
para D. Lia, Ana.” Entregou-me, então dois pacotes de Mirabel de chocolate, “Edgar?”
“Claro, Ana”. Abraçamo-nos por entre lágrimas e nos sentamos de mãos dadas para
contemplar, talvez, o meu último crepúsculo visto daquele morro.
Sugestão youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=DpEAlVsMs9I