Monday, July 18, 2016

HORA DO ANGELUS II
(Luz... Porto)
À Norma 



Mudáramos para a casa nova fazia quase um ano. Nova é modo de dizer. A casa era antiga e o telhado estava sempre a precisar de reparos. Mudáramos de estado, para ser mais exata. Busca por melhores condições de vida.
Minha mãe pouco saía. A saúde frágil abalara-se mais após meu nascimento. Não me diziam, mas eu supunha. Meus irmãos, bem mais velhos que eu, e meu pai, cercavam-na de cuidados.
Morávamos em uma ladeira que dava para um morro. Ficava imaginando o tamanho do morro, a extensão, a altura, a vista. Naqueles dias o saneamento era precário, não havia esgoto, água encanada e a iluminação era escassa. Um poste aqui, outro, acolá. Mamãe, sempre solícita, procurava ajudar a todos como podia. Uma das formas era cedendo água. Todos os dias formava-se uma fila de moradores com suas latas na cabeça em nosso tanque. Não havia perigo. Conversávamos todos e dormíamos com o portão aberto.
Não deve ter sido difícil arranjar uma empregada. Senhorinha veio para nós recomendada por uma vizinha, Dona Vera, a costureira do bairro. Não era exatamente simpática. Diziam que tinha “gênio”. Era eficiente e muito devotada à minha mãe e a mim. Não fazia parte do serviço cuidar de criança, mas eu tinha loucura por ela e ela por mim. Era ela quem me levava ao parquinho, à praia, onde construíamos castelos de areia. Era eu quem a acompanhava à mercearia, ao açougue, à padaria.
Embora não conseguisse frequentar regularmente as missas, mamãe tinha uma amiga de igreja, Marisa, mãe de uma menina da mesma idade que eu tinha e com quem eu brincava, Daniela. Marisa era casada com um médico que doava amostras de remédios para mamãe. Amostras eram fáceis naqueles dias. Com isso, mamãe atendia, a seu modo, os desvalidos do morro. Ela sempre tinha material de primeiros socorros. Pensava-lhes as feridas, cuidava das queimaduras, distribuía analgésicos, vermífugos, vitaminas, e, em casos extremos, um ou outro antibiótico. Não sem antes consultar o Dr. Macedo, marido de Marisa, por telefone.
Era triste ver mamãe, tão boa e desprendida, passar a maior parte do tempo presa ao leito. Quando tinha forças, ela cuidava do jardim, plantado por ela. Eu a ajudava com meu regadorzinho vermelho. Fazia também mimos para nós na cozinha. Pão de minuto, brigadeiro, bolos e broas. Sem mencionar sua batata frita imbatível e suas sopas.
Mesmo com suas dificuldades, mamãe me chamava para ouvir histórias. Ela lia uns livros enormes, de alguma coleção que que se perdeu no tempo. Outras vezes, desenhávamos ou brincávamos de boneca. A agulha não era o seu forte, mas ela ensaiava algumas roupinhas com retalhos que recebia de D. Vera.
Uma tarde de outono, enquanto eu estava perdida olhando o  céu, surpreendi-me ao ver minha mãe vestida para sair. Camisa, calça far-west e galochas. Os cabelos cor de mel, presos por pentes atrás das orelhas, ela estava linda! Trocou minha roupa, calçou-me galochas e, tomando-me pelas mãos suaves, disse-me: “Vamos!”. Eu perguntei: “Aonde?” “Surpresa! Você verá.”
Fomos subindo lentamente a ladeira, Chegamos ao morro. Entendi a razão das galochas: lama. Muita lama e uma vegetação esquisita, alta em alguns pontos. Os moradores surpresos cumprimentavam-na: “Boa tarde, D. Lia”. Continuamos a subir, subir. Os barracos se escasseavam. Veio um menino alto, magro e perguntou se tínhamos algo para comer. Abri minha lancheira e dei-lhe meus dois pacotes de Mirabel de chocolate, Ele devorou tudo. Dei-lhe também a vitamina de banana que eu levava na garrafinha. Sorrindo, ele agradeceu e, afastando-se, disse num largo sorriso: “Sou o Edgar.”
Chegamos ao topo um pouco ofegantes. Havia begônias em um canteiro mal-feito. Alguém cuidava delas. Mamãe disse: “Veja”. Eu olhei. Olhei e vi. Um cartão postal da cidade. A praia, outros morros, pássaros, o mar sem fim. Dei pulinhos de alegria. Minha mãe apontou o sol. Ele estava incandescente. Senti a mão de Deus a nos tocar. Aos poucos ele começava a se esconder por trás dos montes, como se fosse mergulhar no mar. “É o crepúsculo. O pôr-do-sol, Ana. Um dos momentos mais lindos do dia.”
Antes que o sol se pusesse de vez, ela tomou-me pelo braço. “Temos de voltar antes que anoiteça”. Fomos voltando. Mais adiante, um Edgar já alimentado disse: “Vão descer? Eu acompanho”. Foi melhor. Ele conhecia bem o caminho. Já no final as poucas lâmpadas de mercúrio foram se acendendo, fracas. Chegamos a casa antes de meu pai e meus irmãos regressarem. Deixamos as galochas no jardim e fomos tomar banho.
“É o nosso segredo. Não conte para ninguém. Eles não vão gostar e não poderemos voltar.” “Um segredo! Agora eu tinha um segredo com a minha mãe!”    Até então só contara meus segredos a Senhorinha, que os guardava a sete chaves.”
Naquela noite sonhei que íamos todos a um piquenique em um parque grande, verde, com um lago. Mamãe estava bem, bem vestida. João e Carlos, meus irmãos, usavam gravatas borboleta e suspensórios. Meu pai trajava um terno. Senhorinha, Edgar, Daniela e ouras tantas crianças com quem eu brincava, participavam também. Divertimo-nos muito e tudo acabou com uma enorme chuva.
Apesar de seu coração fraco, mamãe conseguiu repetir a façanha algumas vezes mais. Eu não resistia e colhia begônias para enfeitar o Sagrado Coração de Maria e o Sagrado Coração de Jesus que protegiam nossa casa em uma das paredes da sala.
Hoje, aniversário de morte de minha mãe, que nem me viu formada como tanto queria, lembrei-me das begônias. Mudáramos novamente logo após sua morte. Senhorinha continuou conosco até o nascimento de meu segundo filho, quando foi juntar-se à mamãe. Meu pai resistira até mais de noventa. Meus irmãos, perdi-os há pouco.
Há muito não voltava ao antigo bairro. Senti uma vontade imensa de oferecer begônias colhidas daquele jardim  para minha mãe. De relembrá-la de nosso “segredo”. Peguei um táxi, saltei e comecei a subir a ladeira. Já no início do morro, fui abordada por adolescentes, meninos que podiam ser meus netos, armados até os dentes. Eu não podia subir. Ordens do chefe da boca. Com minhas retinas cansadas -mais de setenta anos podem pesar- vi como tudo havia mudado. Respondi que me levassem ao tal “chefe”. Confabularam e me disseram que o chefe não atenderia uma velha.
Vejo, então, um senhor alto, de mais idade, se aproximar. Eles baixaram as armas. O tal senhor era respeitado. Contei-lhe minha história. Ele sorriu e me disse: “Levo a senhora lá. Não precisa ter medo.” Subimos, eu com uma certa dificuldade. Paramos em uma birosca, ele me ofereceu um suco e um sanduíche. “Aqui é limpinho, garantiu.” Comemos e conversamos um pouco. Por fim, chegamos ao topo. O canteiro, bem cuidado, continuava lá. Era um oásis em meio à quase guerra civil que vivíamos. Com surpreendente delicadeza, ele colheu um buquê improvisado. “Leve para D. Lia, Ana.” Entregou-me, então dois pacotes de Mirabel de chocolate, “Edgar?” “Claro, Ana”. Abraçamo-nos por entre lágrimas e nos sentamos de mãos dadas para contemplar, talvez, o meu último crepúsculo visto daquele morro.

Sugestão youtube:

https://www.youtube.com/watch?v=DpEAlVsMs9I