Saturday, May 10, 2014


Mãe
(Luz... Porto)



Seios, braços, colo, cabelos.
Refúgio pro bebê assustado
Que via a vida em novelo.
Teu coração foi o compasso
Ritmado a acalentar noites
Até me fecharem os olhos de mormaço.

Seios, braços, colo, cabelos.
Por que se tornaram tão ásperos?
Cuidado virou desmazelo,
O leite azedou, virou fel.
E me nutriste com desalento,
Desespero, angústia, e eu, ao léu.

Seios,braços, colo, cabelos.
Eras tão jovem ainda!
E a teu Deus, querias revê-Lo.
Olhaste atônita o abismo
E foste chamada às origens,
Apocalipse virou neologismo.

Seios, braços, colo, cabelos.
O terror toldava-te os olhos.
Sei que vias a alma em pelo
E passavas as noites em claro.
Transformaste-te em simulacro
De Górgona, espécime raro.

Seios, braços, colo, cabelos.
Fera atordoada a rejeitar a cria.
Coração virou pedaço de gelo.
Quando te pratearam as mechas
E te tornaste pronta pro esquife?
Vais ferir-me de novo com flechas,
Deixando-me só e perplexa?
Sereia presa em arrecife,
Representante da dor que sentiste
Nesta Terra mais que sonâmbula?


               LIMBO            
(Luz... Porto)  




                   
Guardo a tua voz nos meus silêncios.

Tua voz que só ouvi em longínquas gravações.
Às tuas mãos leves de gângster jardineiro
Dou-te as minhas, de pianista que não fui.
Se danças só, eu, bailarina fracassada, nem danço.
A minha alma, essa sim, faz volteios, grands jettés enquanto sonho.
Quem sabe a ponte para a minha travessia seja te escutar...

Friday, May 09, 2014


Sem Mentes
(Luz... Porto)


Não sei responder teus versos.
Gosto de frutos diversos.
Na foto via laranjas,
Não são minhas preferidas.
Adoro, porém, bergamotas:
Sabem- me bem à infância
E à busca do tempo perdido.
Abrindo-as surgiam franjas
A desmancharem-se na língua.
Sabor que me encantava
Mas hoje eu sofro à míngua.
Abusei da alergia
Que o prazer proporcionava.
Foi assim a minha vida:
Uma comédia de erros.
Minha máscara carcomida
Tirou-me logo a alegria.
E em meio à minha errância,
Entre idas e partidas,
Esse coração sofrido
Apodrece no desterro.

Monday, May 05, 2014

UMA NOITE EM BUENOS AIRES

(Luz... Porto)



     Hoje tive uma surpresa que muito me emocionou.
     Sabia que uma amiga dançaria em uma festa de aniversário para lá de especial, cujo tema seria Uma Noite em Buenos Aires. Com apresentação de tango e tudo! Pelo feed de notícias vejo-a marcada junto a outras mulheres, todas trajadas a caráter e sinto o clima de alegria e celebração da festa.
     Qual não foi minha surpresa ao saber que a aniversariante não era outra que Dona Arlene Rodrigues da Rocha? Esse nome pode não significar muita coisa para algumas pessoas, mas, para nós, que estudamos no Assunção, era um mito. Professora de matemática, terror de vários estudantes, era séria e impunha respeito. Ministrava aulas para o Segundo Grau. E era a única que exigia o tratamento de 'dona'.
      Comecei a ter aulas com ela no primeiro ano. Era baixinha, tinha um domínio de classe extraordinário e usava sempre as unhas vermelhas. Mãos e pés. Estes sempre em saltos altos. Mais para o vinho que para o vermelho aberto, o esmalte. O batom também era de tom parecido, se não me falha a memória. Os cabelos negros, talvez castanhos, mas escuros, cortados em camadas, completavam o contraste. Esse traço de vaidade aliado à vitalidade que dela emanava tornava suas aulas não mais agradáveis (eu as adorava e também gostava muito da disciplina), mas, sobretudo, revigorantes e desafiadoras.
     Era matéria que não acabava mais. Exercício em cima de exercício. E ela gostava de trazer questões de vestibulares antigos, o que não era tão comum na época.No Assunção não tínhamos 'cursinho'. Só o terceiro ano mesmo.
     Essas questões me enlouqueciam. Desafiavam o raciocínio e eu acabei pegando 'no tranco', como dizem. Sim, era uma questão de treino. De desenvolver a malícia. Qual o volume de uma bola de sorvete, sabendo-se que teria derretido à proporção tal e supondo que a casquinha tivesse tantos centímetros de diâmetro? Pronto! Eu, que adorava sorvete de casquinha, até hoje me pego tentando refazer os passos para descobrir o segredo. E sorrio para mim mesma a cada casquinha consumida. Não pensem que lembro. Não, não lembro. Apesar de muitas dúvidas, enveredei-me pelo ramo das Letras e da Literatura. E abandonei há muito a matemática...
     Um dia ela chegou com a história de uma menina que tinha x saias e y blusas. A pergunta, valendo ponto (recurso que aprendi a usar), versava sobre quantos conjuntos a menina podia fazer sem repetir cores ou algo assim. Imaginei a menina, vi seu guarda-roupa e cheguei a uma solução. Alguns colegas já haviam ganhado os pontos, mas eu não ganhei. Fiquei triste. Não pelos pontos. Apenas achava que o meu raciocínio estava correto. Ela corrigiu no quadro e chegou ao mesmo resultado que eu. Mas o sinal já tocara...
     Fui pra casa acabrunhada e com aquilo na cabeça. Não dormi. Vinha o fim de semana e, nova aula, só depois dele. Muni-me de minha cara de pau. Liguei para uma professora da UFF que conhecia e de quem gostava muito. Era mãe de uma colega da minha irmã. Conversei com ela e fomos eu, caderno, livros, para a casa da alma caridosa. Ela me explicou que meu raciocínio estava correto sim. Que eu havia apenas seguido outro rumo.
E me 'adiantou' o que seria ensinado: arranjo, combinação e permuta. Presenteou-me com quatro livros de matemática, dois para o primeiro e dois para o segundo ano. Livros do professor porque trariam as respostas. Usei-os exaustivamente. Às vezes passava fins de semana mergulhada nos problemas.
     Mas na aula seguinte, quando Dona Arlene nos apresentou as fórmulas e coisa e tal, percebi a mensagem. Não sabia que ela era taurina. Devia ter desconfiado. Meu ascendente em escorpião, água profunda, por vezes me aponta caminhos mais complicados. Ela, de touro, dizia: "Faça o caminho mais simples".
     Depois vieram logaritmos, funções, trigonometria. E a poesia, anunciada na bola de sorvete, explodiu na geometria espacial (?). Calcular volumes e coisas do gênero. Trabalhar com sólidos. Ela levou uma caixa de toblerone para nos mostrar uma outra questão de vestibular. A memória me trai e não sei se aquilo seria um prisma. Desmontou a caixa. Fez com que relembrássemos o cálculo das áreas para chegarmos aos volumes. E, comportamento certamente combatido hoje pelos pedagogos, fez com que decorássemos as formas das áreas para continuarmos com a matéria. E tomou aquilo, diário aberto, marcando pontos. Que delícia! Ficamos afiadíssimos.
     Depois veio a enorme lista de problemas que ela passou. Eu conseguia (não sei como. Morava com meus pais e duas irmãs) ficar sozinha na sala e sentir, perceber as linhas se cruzando, os pontos, o que facilitava e encantava meus cálculos. O volume se tornou palpável para mim. Foi nessa época, por volta dos dezesseis, dezessete anos que aprendi a amar a minha casa.
     No segundo ano, acabamos o livro, a matéria no terceiro bimestre. Estranho, pensei. Ela usou o último para introduzir conteúdo do terceiro ano. Não sabíamos que o nosso colégio tão amado haveria de, por modismo, suponho, substituir o corpo docente por outro de escola de renome no terceiro ano. Fiquei muito desapontada, confesso. Até acho que o Assunção não tinha 'fama' de ser um excelente colégio. Muitos amigos trocaram de escola. Não o fiz, embora tenha recebido propostas.
     Justiça seja feita, o Assunção tinha os melhores professores de matemática. Com raras exceções, ótimos professores de português. Química era um espetáculo. Dona Neiva arrasava na geografia. Em história cheguei a ler trechos de O Capital. Para que mudar os professores?
     Confesso que não aproveitei o meu terceiro ano como poderia ter feito. De toda a minha vida escolar, foi o ano em que menos estudei. O que não me impediu de passar para a UFF em sexto lugar. De poder escolher o curso que eu quisesse na Universidade que eu quisesse. Fiz Letras na UFF, tá. Isso é outra história.
     Já na universidade, soube, por outra professora com quem mantinha contato, que Dona Arlene havia sido aprovada para a Defensoria Estadual! A danada, além de seis filhos, das aulas que dava e bem, cursara Direito. E conquistara um cargo público. Guardei um recorte de sua posse que saiu em um desses jornais de bairro. Não o tenho mais. Já me mudei duas vezes, mais que o suficiente para ir perdendo coisas e papéis por aí.
     Agora me deparo com uma Dona Arlene que fez o mural de sua própria festa, cujo subtítulo é "Rumo aos Oitenta". Oitenta? Quando mencionaram o título, esperava uma senhorinha, uma velhinha. Senhorinha? Não, Dona Arlene, a senhora continua uma rocha como o sobrenome que ganhou ao se casar. Vaidosa, exuberante e esbanjando vitalidade e determinação.
Com tantos alunos que a senhora teve, não há, com certeza, de se lembrar de mim. Mas deixo aqui essa singela homenagem, a única que posso prestar, com meus votos de um lindo e abençoado aniversário.