Saturday, January 13, 2007


BORDERLINE
(Luz... Porto)
Borderline é o novo rótulo
Com que se designam
Certos distúrbios de humor.
Quem sempre viveu no in-between,
No threshold, no limiar, na corda bamba
Será também marginal, fronteiriço?
Borderline, Baudelaire o era,
(Ou teria transtorno afetivo bipolar?)
Segundo sites de pesquisas científicas,
Bem como Bem como Ibsen, Strindbeg, Van Gogh,
Virginia Woolf, Guguin, Mark Twain,
Mahler, Artaud, Munch, Tchaikovski.
Eu e minha alma que transitamos
Numa twilight zone sem fim
No frêmito entre imagens do inconsciente
E a realidade irreal que presenciamos
Somos o quê, estamos onde?
Geniais esses borderlines!
Alguns tentaram o suicídio,
Outros nele tiveram êxito,
Mas todos os da lista enciclopédica
Deixaram um legado imortal.
Meu eu-lírico, de lírico só tem o nome.
Nem um soneto é capaz de cometer.
Que dizer de odes, vilancetes,
Milongas, repentes, cordéis?
Do borderline não ficou a genialidade.
Só as bordas ásperas e cortantes
De quem às vezes opta pela dor do corpo
Por não conseguir suportar a da alma.

Thursday, January 11, 2007


GOZOS DA ALMA
(Luz... Porto)
Perguntam-me o que são Gozos da Alma. Ora, para Geraldo Carneiro é fácil: quem enfrentou quimeras pelos sete mares, pôs letra em algum movimento da Sinfonia do Rio de Janeiro, navegou por mares nunca dantes e do Bardo traduziu a Tempestade e sonetos sabe. Ou antes, intui. Nós, espectadores, leitores e ouvintes, graças a deus, não podemos prever quais serão, para o poeta, os Gozos Da Alma.
De minha parte, não sei. Mas esta noite, entre a fímbria névoa que separa o dormir do despertar, vi-me arrastada para o estranho universo criado por Peter Greenaway para Prospero's Book (A Última Tempestade). Num clarão percebi que gozo é líquido, amolda-se ao receptáculo que o contém. Soube que minha alma já o experimentou em algumas raras, mas abençoadas ocasiões.
Às vezes, ao fazermos amor com a pessoa amada, a poesia dos corpos nos toma de tal forma que dos olhos brotam lágrimas. Não são lágrimas de alívio, de tristeza, de excitação. São lágrimas vertidas portque de alguma forma naquela conjunção carne/alma, mapas natais/karmas, entrevemos a eternidade e a plenitude. É nossa alma que goza.
Pode também suceder que certas notas, certas melodias, certas palavras, estando em conjunção harmoniosa, penetrem em nossos ouvidos de forma arrebatadora e experimentamos algo do êxtase místico descrito por Teresa d'Ávila. Tome-se por exemplo os acordes da transcrição para piano da Morte de Isolda feita por Lizst.
Em certos agostos, de céu azul intenso, o contraste entre este e o roxo e o amarelo dos ipês, o vermelho dos bicos-de-papagaio e dos flamboyants assalta-nos a retina enquanto borboletas multicores ruflam suaves suas asas em nosso ombro. Lágrimas furtivas brotam sem querer e supomos, crédulos que somos, que seja um sinal divino a nos desejar "Feliz Aniversário".
O riso de um filho, seu primeiro "mamãe" ou "papai", seus primeiros passos incertos, o primeiro dente que germina da gengiva inchada, fazendo cessar a febre, são elementos capazes de provocar tais gozos.
Por outro lado, a fisionomia de um pai moribundo, acamado, que se ilumina em seu último lampejo (aparente) de consciência a dizer sem palavras "Filha, eu te amo" para depois se entregar sem forças à morte é, definitivamente, um gozo. De adeus, mas um gozo.
Não foi à toa que a Igreja católica dividiu os mistérios em gozosos, dolorosos e gloriosos. O que ela não percebeu, ou não divulgou, é que o grande Mistério de nossa existência é um compósito desses três e que, muitas vezes, o que chamam de "gozo da alma" pode muito bem ser a "glória da alma".


POEMA DA SEM FACE
(Luz... Porto)
Ao nascer um ventre torto
Desses retorcidos à sombra
Expeliu-me dizendo:
"Vai, Luzia, vai ser gauche na vida."
E é essa a única coisa
Tomada de empréstimo a Drummond.
Já nasci meio escolióidica,
Meio torta, sem encaixe.
Os anjos não me quiseram
Tampouco os demônios.
Não tenho sete faces,
Tenho quase uma centena
Que se resumem a uma:
Desconhecida, rechaçada, acuada.
Os carros passam,
Aviões cruzam o céu
E pernas, pernas, pernas,
Me fazem, trôpega, tropeçar.
Mundo imundo,
Parabólicas pulsantes,
Se eu não nascesse leonina
Seria apenas enganação.
"Deus, meu Deus",
É o que diria meu pai
"Por que me deste um coração
De tamanho exagerado
Se sabias que eu não o bombearia,
Se previas meu infarto?"
Eu não queria confessar
Mas essa verve,
Esse poema verborrágico,
Essa vida em nevoeiro,
Não passam de mera ilusão
.


MEUS MORTOS
(Luz... Porto)
Meus mortos não usam sobrecasaca.
Eles são mais caseiros, mais simples.
Meu Carlos usa calças de tecido,
Camisas de mangas curtas e botinas fechadas,
Feitas por medida, sequela de fratura
Sofrida ainda em ventre materno.
Minha Irene agora só usa peignoir
E um cinto velho, puído por baixo dele
A representar o martírio de não sei bem que santa
Que a absolveria dos muitos "pecados" cometidos.
Meu Paulo, sempre dentro, desde antes
Até o fim dos tempos,
Veste apenas umas bermudas e calça franciscanas.
(Em havendo visitas, usa camisa de botões.)
No mais, traja seus inesquecíveis pijamas azuis
E suas samba-canção, recuerdo da juventude.
Carlos, Irene e Paulo tomam café preto bem forte,
Coado por artefatos primitivos cosidos por Irene,
Coadores sustentados por tripé feito por Carlos.
Paulo é quem prepara sempre o café matinal
E traz da rua o pão quentinho, sem bromato,
Em que se espalhará manteiga, não margarina.
Enquanto a casa se espreguiça, sonolenta,
Os três sentam-se à mesa da cozinha
Coberta por linóleo limpo, dos anos dourados.
Irene parte o pão com serrote grande:
A ela cabe o meio, aos dois, as pontas.
Todos tiram o miolo do pão
-Mas Paulo o cata e o come escondido-
Antes de passar a manteiga.
Mergulham-nos nas grandes xícaras de café
E comem enquanto conversam.
Antes das seis Paulo sai e pega a barca.
Carlos toma a bicicleta e dirige-se à escola
Onde se divertirá com seus alunos.
Irene recosta-se na poltrona
Agora já destruída pelos ratos
E começa suas ladainhas sem fim.
Às vezes desvio-me de um cigarro
Que Carlos, desavisado, sonolento,
Quase deixa tombar do sofá abóbora e branco
Que já há muito não há.
As panelas de Irene ainda fervem
Seu inimitável doce de leite,
Ou ambrosia no Nordeste,
Segredo que levou para o túmulo
Junto com minha boca tatuada em vermelho
E que exala aquele cheiro de infância.
Converso sempre com Paulo.
Em dias de sono pesado
Ele abre a porta de meu quarto
E me chama para o trabalho
Ou para o antibiótico com hora marcada.
Nas noites em que o peito se me aperta
E eu sufoco em lágrimas contidas
Ele vem, deita-se a meu lado
Toma a minha mão, apertando-a.
Sei então que tudo ficará bem
E, com os olhos úmidos, adormeço.