NOCTÍVAGA
Thursday, April 23, 2015
GASPARZINHO
(Luz... Porto)
Eu era uma criança facilmente
impressionável. Cheia de
imaginação. Dessas
que sonhavam com os vestidos que a
Narizinho usaria em
seu casamento com o Príncipe
Escamado. Um era cor
do céu com todas as estrelinhas. O
segundo, o que mais
me fascinava, era cor do mar com
todos os seus
peixinhos. Que nadavam nele, pois era feito
de água. Como eu
almejava trajar um desses!
Crédula, aceitava muito do que me
diziam. Cheguei ao ponto de ter uma "amiga" por telefone dos
cinco aos seis anos. Chamava-se Marina. Nós nos conhecemos a partir de
um telefonema que caiu, por engano, em nossa casa. Posteriormente,
essa "moça" passou a me ligar e conversávamos sobre vários
assuntos. Ela me dava "bons conselhos" e me ouvia. E ela me
dizia que tinha me visto na pracinha com outras crianças, na padaria com a
empregada. Eu ansiava pelo dia em que eu a veria face a face. De repente,
do nada, ela sumiu. Entristeci. Anos mais tarde vim a saber que
"Marina" fora um engodo. Nada mais era do que "uma
brincadeira" da minha irmã mais velha, que se valia da extensão em
casa de minha avó em uma tentativa de me manipular. Talvez tenha sido a
primeira vez em que desacreditei do ser humano...
Uma das minhas grandes alegrias e esperanças
era a Páscoa. A Páscoa e o mistério do renascimento. A Páscoa e...o
Coelhinho! Que imagem mais linda para enfeitar meus sonhos! Embora tenha tido
uma formação religiosa muito rigorosa, ministrada por minha mãe, fanática
e obcecada pela culpa de existir, que não me permitiu frequentar outro catecismo
que não o dela, tinha formado uma ideia um tanto personalizada de Deus. Pode parecer um pouco
herético,
mas fazia todo o sentido para mim um Ser Supremo
que enviaria adoráveis mensageiros peludos para nos presentear com o Ovo
da Ressurreição.
Papai Noel me soava por demais inverossímil
com aqueles
trajes
muito quentes para a canícula carioca. O Natal me trazia uma tristeza
incompartilhável. Talvez para isso tenham contribuído o LP A HARPA E A
CRISTANDADE, e sobretudo aqueles versos reveladores: "Já faz tempo
que pedi, mas o meu Papai Noel não vem. Com certeza, já morreu, ou,
então, felicidade é brinquedo que não tem." O Natal não era uma festa
democrática, já o pressentia. Talvez essa descoberta, a de que nem toda criança
ganhava presente, tenha sido a minha segunda decepção com o ser humano...
A
Páscoa? A Páscoa não. Pelo menos um ovinho, por pequenininho que fosse,
as crianças do morro à frente do qual nossas casas foram construídas, haveriam
de receber na escola. Ou de nós, moradores "abastados".
Com que urgência e excitação aguardava o
Sábado de
Aleluia
amanhecer em Domingo de Páscoa! Não reclamava
para
me recolher. Mas ficava atenta no escuro, os sentidos
hiper
aguçados, à espera de um descuido do coelhinho, de
modo
a surpreendê-lo "no pulo". Por mais noctívaga que eu
fosse,
acabava dormindo e a manhã chegava antes de mim,
com
os almejados "ovos". Uma parte de mim não se importava muito porque
já intuía o versículo bíblico que dizia algo como serem insondáveis os
caminhos do Senhor.
Depois vinha o almoço, a cobiçada água
mineral Prata que cabia a meus avós e a minha tia e, por fim, a missa
solene. A Igreja do bairro que parecia sempre tão roxa e opressiva, abria-se
em cores e eu me reconciliava com o Templo.
A Páscoa também reacendia em mim um dos
meus
primeiros
amores: Gasparzinho, o coelho branco comprado em uma mercearia do bairro pela empregada/babá que insistia
na necessidade de eu ter um bichinho de estimação. Lembro-me do dia em que
fomos andando até o estabelecimento, eu e ela, solenes e de mãos dadas,
para que eu mesma resgatasse daquelas gaiolas infectas aquele que
seria meu companheiro.
Vivemos momentos felizes. Eu, que nunca gostei de acordar, levantava
rápido para chamá-lo do alto da escada e vê-lo saltar de modo a levantar
a tampa da casinha que meu avô construíra com caixotes. Descia correndo, antes
de comer qualquer coisa para brincar com ele no jardim de minha avó.
Todos os anos pegávamos o ônibus para subir
a serra e nos
refrescarmos
em Friburgo. Meu pai, homem corretíssimo, de moral ilibada, que cumpria a
lei à risca, se via em cólicas ao embarcarmos com um coelho em uma caixa de
sapatos e um hamster, Tico Mico, que minha adotara mãe por parecer filho
do Gasparzinho, em uma lata de
biscoitos.
Um ano meu pai não aguentou. Despachou meus
dois roedores para o sítio de um primo.
Na volta das férias, a fatídica notícia: eles teriam morrido de tristeza. Recusavam-se a
comer sem a presença da menina espevitada que lhes dava cenoura, repolho,
entre gritinhos de surpresa. Pela terceira vez o ser humano recebia o
meu descrédito.
Um dia, não sei por que cargas d'água, uma
de minhas irmãs se deu conta de
que eu ainda acreditava no Coelhinho da Páscoa. Achou absurdo uma criança
da minha idade ser ainda tão crédula. E me revelou a dura verdade: “Coelhinho da Páscoa nunca existiu.” E
riu da minha crença em um coelho que botasse ovos.
Os anos se passaram, ainda tenho meu lado
crédulo, ainda
acredito
em pessoas que não merecem minha confiança. A descrença em meus
semelhantes só aumenta... Quem sabe não espere ainda um Príncipe Encantado que nunca
virá? Contento-me com a leitura dos mitos, dos contos de fada, que, teimo
em subverter e com livros de literatura fantástica. Tudo o que seja
genuinamente baseado em fatos irreais.
Mas lá, num cantinho recôndito de meu
coração, arde ainda, bem fraquinha, a brasa adormecida de uma esperança
que povoa meus sonhos: a de que um dia eu morra velhinha e em paz e
seja transportada a meu paraíso que difere em muito daquele prometido pelo
Profeta, povoado com milhares de virgens. O que faria eu com essas
virgens, ora bolas? Em meu paraíso eu andaria por uma pequena estrada de
flores e árvores perfumosas ao fim da qual seria recebida por meus mortos
queridos: meu pai, minha avó, meu avô.
Viriam sinuosos todos, todos os gatos que
conviveram comigo: Ruca, Erwin, Ronrom, Erick, Osíris, Piotr
Illitch, Timtim, Paco de Lucia, Mia, Nina e Baltazar, rodeados por
minhas cachorrinhas, Dudinha, Agatha, Christie e Bellinha. E, claro, uma
vez lá eu me veria junto ao Coelho da Ressurreição que comandaria um balé
formado por peludinhos branquinhos, pretinhos, cinzinhas, marronzinhos e
bicolores. Todos carregando cestinhas com ovos de chocolate Lacta a
correr pelos jardins. E Gasparzinho depositaria uma cestinha a meus
pés e me chamaria para jogar bola, como fazíamos no jardim de minha avó.
Quem sabe assim, através desses anjos de pelo, eu visse enfim restaurada
minha confiança no ser humano pela eternidade afora?