Monday, October 19, 2015

A POÉTICA DA CASA

(Luz... Porto)

"A casa é como uma escrita onde as palavras se motivam e desenvolvem por si
 próprias e as metáforas se geram como extensões da carne...". Herberto Helder.


Sempre me encantou o livro de Bachelard, A Poética do Espaço, porém mais me encantam as casas antigas, feitas para morar. Para morarem em nós. Pois que foram erguidas por nossos antepassados e sobrevivem à nossa passagem.
Nasci cercada de algumas. Uma, em que meus bisavós moraram, era especial. Era conhecida como "o 2", referência ao número que tinha ou tivera. Abrigou tias e tios. Agregados. Escravos libertos que de lá não saíram. Em verdade foi o pedaço da chácara, de propriedade de meu bisavô, que resistiu à partilha forçada pelas vicissitudes e pela má administração dos bens que se seguiu à sua morte. Era onde se localizava a casa propriamente dita e a área mais utilizada pelos empregados.
Da varanda dos fundos de minha casa, construída pela teimosia e labuta de meu pai, via o resto do fogão a lenha onde a centenária Vitória preparava seus doces em tachos enormes. Via os tanques gêmeos onde se lavava a roupa branca. Os varais longos que cortavam o espaço, amarrados a estacas de madeira. O lago dos patos que fora esvaziado. As árvores. O galinheiro, que foi mantido.
A propriedade estendia-se pelos fundos de três casas de tamanho razoável, sendo a nossa, a terceira. A casa mesmo ficava bem longe, à frente, e eu, pequenina, punha-me na ponta dos pés para vê-la, imponente, com seus porões misteriosos. Pedia à mãe, que lá morara por uns tempos, que me contasse como era. O assoalho de tábuas. Os muito quartos com pé direito de 4 metros. As louças. Os urinóis. O banheiro que ficava longe dos quartos e causava medo em muitos de seus habitantes que hesitavam em utilizar as latrinas de madrugada.
Queria saber dos fantasmas; alguns, jurava meu avô, os visitaram, para seu desespero. Minha mãe não contava. Barata de igreja, como a chamava meu pai, nunca admitiria tal coisa. Mas o avô deixava escapulir algumas passagens. A sobrinha Beatriz, filha do irmão preferido, que vovô, bom médico, não pudera salvar da Gripe Espanhola, encontrava-se internada em Friburgo para tratar de uma tuberculose. Não fazia muito tempo que meu avô a visitara quando ela surge, passa pela porta da sala e diz: "Vim me despedir. Já estou boa. Obrigada." Atordoado, vovô nem escuta a campainha do telefone, artigo de luxo, necessário a um doutor. Um dos empregados diz: "É para o senhor". Avisaram do sanatório a morte de Beatriz, jovem, com vinte e poucos anos.
Outro episódio famoso se deu quando meu avô, professor por vocação, e médico para agradar o pai, estava decido a trocar de profissão. Estudando em outra casa, sozinho, ouve o pai, falecido há pouco, dizer: "Carlinhos, o que vai fazer da sua vida?" Foi o suficiente para que ele descesse a ladeira desesperado e fosse buscar abrigo com as irmãs no "2". Foi o suficiente também para que ele embalasse o retrato do pai e da mãe - vai que ela também resolve falar -, e os escondesse até que mamãe os resgatasse e pusesse na parede de nossa sala.
Mamãe me contava dos muitos bichos que lá viveram, das aventuras e estrepolias de Conrado, amigo que ficara órfão e fora criado por minhas tias, junto com os caçulas do irmão mais velho, também órfãos de mãe, Juca e Lica. Com a morte do bisavô a casa entrou em decadência e foi vendida uns 40 anos depois. Queria visitar os vizinhos que a compraram. Dona Judith, senhora simpática e seu filho e netos. A mãe não deixava. Mas cumprimentava a todos que apareciam no quintal, à espera de um convite. Eu contava uns trinta e poucos anos, quando morreu o filho. Dona Judith já se fora. A casa entrou em inventário e foi demolida. Doeu. Com a epidemia de dengue, o lago seco e os tanques gêmeos foram destruídos por vizinhos que pularam o muro. Só restou o mato. E as lembranças que o vento me sopra quando estou distraída.