Monday, September 07, 2015




  A CASA DE VIDRO
(Luz... Porto)



  À orla da praia havia muitas casas. Lindas.  Chiques. Sempre fechadas. Ela adorava passear por ali. Era um pouco longe do lugar onde morava. Talvez nem tanto. Mas para os seus oito anos parecia uma lonjura sem fim. Ia com a irmã, no seu exuberante carro de segunda mão, com a mãe, paralítica, e com outras “caronas”. Às vezes levavam o cão.
    Saltavam, tiravam a cadeira, colocavam a mãe e caminhavam pela orla. A mãe adorava o mar. Em algumas ocasiões, iam em trajes de banho. Ela, temerosa, não sabia nadar. O mar era imenso demais para ela. Metia-lhe medo. Mas adorava a renda branca formada contra a areia. Molhava os pés e dava gritinhos de entusiasmo. Sorvia o gosto da maresia. Enchia o seu baldinho e punha-se a construir castelos.
    Castelos? Castelos não. As casas com que sonhava. A mansão imponente. A outra, linda! Parecia um pagode chinês. Ou a mais moderna, mais cinematográfica. Feita sobre pilotis e retangular. A frente toda de vidro esverdeado. Persianas verticais, talvez verdes. Imaginava uma piscina com cascata no fundo. E um jardim com flores. Sim, na frente havia apenas uns arbustos áridos e uma árvore longilínea, semelhante a um coqueiro ou a uma palmeira.
    Nunca chegava a concluir o prédio. Era a água que invadia e minava os alicerces. Ora a prima mais nova que, desengonçada, perdia o equilíbrio e levava, com o pé, parte do projeto. Ora então a mãe, que, embora exímia nadadora em piscinas, não confiava no seu corpo maltratado para enfrentar as ondas, e acabava gritando por socorro, mesmo com uma das filhas ao lado.
    Retornavam frustradas à casa. A mãe se sentindo um estorvo. A irmã, com raiva, impotente por não dar alento maior a essa mãe tão ensimesmada que mal lhe notava a presença. Ela, uma arquiteta fracassada. Tomavam banho, vestiam-se, jantavam e recolhiam-se cada uma a seu quarto. O pai ainda assistia à novela após o jornal. Ela não sabia o que se passava em cada cômodo. No dela, muita coisa, certamente. Ficava deitada, mirando o teto, pensando nas casas. De quem seriam? Por que nunca as via abertas? Como saberia habitá-las? E a maresia... E sonhava. Cada noite com uma. Todas tinham escadas. Em mármore, decerto. Ela, a Audrey do Funny Face, desceria por elas sem passar pela Vitória da Samotrácia, mas igualmente radiosa, bela e feliz. Assim adormecia todos os finais de semana.
    Com problemas sérios de ouvido, causados, na verdade, por alergia, o que não se sabia na época, ela nunca participava das festas juninas da escola. Nem se cogitava chama-la para dançar. Naquele ano houve substituição da professora de Educação Física e do uniforme de ginástica. As aulas chatas davam lugar aos jogos. Ela jogava queimado, coisa que adorava. Não era má jogadora. Tinha garra. Estava aprendendo handball. A professora convocou-a para dançar a Quadrilha. Seus olhos se iluminaram. Estava com os cabelos mais longos, poderia fazer maria-chiquinhas. Não faltou a um ensaio. A irmã providenciou-lhe uma caipira chique. Vestido de xadrez azul com viés vermelho na gola, nas mangas e em cada babado. Avental de laise branca. Fitas vermelhas, meias brancas e sapatos de verniz vermelhos. Ela se sentiu uma princesa.
    Na semana da festa a febre começou. Junto com ela, a tosse. A tosse não passava. Catarro preso. Resultado: coqueluche. Das brabas. Mais de um mês de cama. A mãe providenciou uma cama no quarto dos pais para que pudesse cuidar melhor da filha. Pai e mãe se revezavam. Fizeram promessas. Estava tão feia a coisa que uma prima chegou a lhe dar um objeto há muito cobiçado: uma Nossa Senhora de Lourdes em vidro verde pesado. A santa repousava sobre uma base de metal furada em várias estrelinhas, dentro da qual se punha uma lâmpada verde. A imagem viera da França mesmo. À noite, exausta de tanto tossir e quase sufocar, ficava mirando as estrelas no céu do quarto. Conversava com a santa e fazia pedidos. Dentre eles, estar curada para seu aniversário. A santa não respondia, mas deve lhe ter ensinado uma coisa: a sonhar acordada para esquecer da dor.
    Então ela começou a sonhar. Seria uma adulta bonita, boa e generosa. Conheceria um príncipe com quem se casaria. Eles seriam felizes e morariam em uma daquelas casas. E teriam um carro vermelho, como o da música. Conversível. A princípio era difícil se concentrar. O príncipe não tinha rosto até que ela viu um artista em uma revista. Era ele. Seria sempre ele. Alto, magro, cabelos negros, elegante, educado. Lindo. Nunca soubera o nome. Mas a imagem permaneceu gravada. Noite após noite eles viviam uma história de amor. Histórias diferentes. Mas sempre terminavam juntos.
    Ela ficou boa, com algumas sequelas. Voltou à escola. Perdera mesmo foram as férias. Nesse meio tempo, a mãe ganhou uma cadeira de rodas de verdade. Dessas motorizadas. Coisa boa, importada. Presente de uma prima muito generosa. Mas a mãe não se sentia segura o bastante para sair de casa sozinha. Andava era dentro de casa. O máximo a que se aventurava era, nos passeios àquela praia, a dirigir sua cadeira com o cachorro latindo feliz ao lado. Apenas ao longo da calçada.
    Passaram-se alguns anos, o pai teve câncer. Por sorte ficou internado perto de casa. Algo mudou na mãe. Ela ia ao hospital e à padaria, um quarteirão depois, sozinha. Encorpou. Passou a fazer acupuntura e fisioterapia. Tornou-se mais independente. As orações à roda da Santa Verde eram uma constante. Havia diversos grupos em diversos lugares orando à mesma hora. Não é que o pai se curou?
    Por motivos econômicos ela mudou de escola. Foi estudar no bairro distante que ela tanto amava. Via a praia na ida, o ônibus lotado. Via as casas na volta. Ora sentada, ora em pé. Mas sempre fechadas. O máximo que divisou foi um carro em uma das garagens. Nunca conseguiu saber a quem pertenciam. Os sonhos tiveram de voltar pois, com o câncer, veio a aposentadoria do pai. E as coisas ficaram mais apertadas. Para dormir, só com o céu esverdeado, a bênção de Nossa Senhora e a certeza de sucesso na idade adulta.
    Pois saibam, vieram príncipes. Nenhum tão bonito. A maior parte revelou-se sapo. Para alguns ela foi princesa de verdade. Para poucos, melhor dizendo. Apesar de sua ingenuidade, reconhecia em alguns plebeus o sangue azul. Até acertou. Mas os contos de fada vão sempre além da última página e nenhum deles quis ultrapassar esse limite. Para os de sangue azul que realmente tocaram seu coração e lhe marcaram as entranhas ela nunca fora princesa. Talvez uma dama da corte, uma aia. Nada além.
     A santa sumiu, foi-lhe tomada pela mãe e, em alguma reforma, quebrou ou desapareceu. As noites continuaram longas para ingressar e rápidas demais para o descanso. A orla tão apreciada foi invadida pela especulação imobiliária. Restara apenas a casa que ela elegera: a de vidro verde, que parecia casa de cinema. A casa onde ela e o seu príncipe haveriam de viver, constituir família e ser felizes. Seriam artistas os dois para que pudessem realizar juntos as coisas mais inimagináveis, ainda que em sonhos.
    Qual! Nunca mais voltou àquela praia. Quando precisava, fazia outro trajeto para não despertar lembranças enterradas, para não correr o risco de reanimar o carvão. Poderia haver uma brasa adormecida que ao menor sopro... Optou por uma vida medíocre. Não sonhou mais. Para dormir duas coisas: cansaço ou umas gotas de Rivotril...