Wednesday, April 09, 2014

Doce Deleite
(Luz... Porto)
À memória de Irene Marques Velloso


     Retorno da casa paterna. Já não há mais pai. Nem paz. Envelheceu a casa? Envelheci eu? Os portais, as telhas deslocadas pelo vento. Tudo sabe a saudade. Meu quarto, encontro-o trancado. Parte de meu tesouro ainda se encontra lá, sob a forma de vinis. Cansei de lutar. Um dia invoco o "Abre-te, Sésamo" e adentro a caverna de Aladin.
     Curiosa essa visita. Encontro-me mais distante, mais endurecida, mais aérea, como se revisitasse a "Floresta do Alheamento" pessoana, conhecida na adolescência. Garrafas vazias, cadeiras quebradas, plantas esmaecidas. Meu olhar tudo percorre inerte.
     Súbito é servida a sobremesa, após refeição de que não partilhei. Algo irrompe em meu peito: as flores amarelas nos pratos comuns. Eram eles, sem dúvida. Comprados por meu pai, meu avô, minha avó?
     A tia esclarece o que a memória nem poderia alcançar: "Não. Papai comprou os pratos em Friburgo. Numa loja no fim da praça." Eles estavam lá bem ante de eu ingressas naquele universo. Foram adquiridos por meu avô antes de eu sonhar em nascer.
     Olha para minha mãe e digo: "São os pratos de Mamãe Irene. Um é meu." Para minha surpresa, mamãe, que sempre implicara com esse tipo de solicitação esquisita de pertences pessoais inusitados, retruca: "Claro. Leva um." Eu digo: "Mas eram três..." A tia replica: "Não. Eram quatro."
     Não sei como eles ressurgiram, onde estavam escondidos. A questão numérica não era numerológica. Dizia respeito ao caráter dessa avó, tão pouco apreciada pelos netos, em geral, e tão amada por mim. A avó metódica, controladora, controlada, cheia de regras, minimalista e econômica ao extremo. Curiosa aquela combinação. Enquanto em mim tudo é explosão, psicodelia, verborragia, nela era tudo contenção, classicismo e silêncio.
     Que mistério fora esse que nos unira? Não sei. Opostos que se atraem? Na verdade, não éramos opostas. Mas disso só saberia em seus últimos anos de vida. Irene, essa paz que não acolhia crianças, que não era dada a demonstrações de afeto e a quem nada, exceto a filha doente, parecia interessar, "aceitava" a minha presença. Sempre o fizera.
     Contrariando sua prática usual de isolamento, ela me recebia em sua casa em horários diversos. Café da manhã, se cedo eu acordasse, meio da manhã, quando as tarefas domésticas eram feitas, almoço, hora da novela das seis e no lanche, antes do recolhimento às nove. Tudo me interessava. A casa, mobiliada com rigos monástico, parecia enorme. As palavras que ela usava, o capricho com que ela mantinha os dentes cuidadosamente limpos e escovados, tudo era motivo de curiosidade.
     Os pertences eram contados: garfos, facas, panelas, pratos, copos, canecas. De um luxo ela não abria mão e a ele acabei me acostumando: a sobremesa. Doces feitos por ela. Melado, marmelada, da Colombo, doce de abóbora e o manjar dos deuses: o doce de leite.
     Com que cuidado e minúcias era feito esse doce! Horas e horas no fogo do velho fogão de três bocas, que brilhava como novo. Leite de pacote, tipo C e açúcar, muito açúcar. A temperatura ideal alcançada manualmente e no olho pelo controle do acendedor. Depois deixava-se que o tempo cuidasse de apurar o sabor, tal como só ele sabe fazer aos vinhos mais apreciados.
     Nesse meio tempo, a casa era arrumada, espanada, varrida. A beleza com que a roupa de cama, imaculadamente branca, era arejada. Na janela de um lado do amplo quarto, ficavam a colcha e as cobertas. Na outra, do lado oposto, os travesseiros, devidamente afofados. E o doce a se formar...
     De vez em quando espiávamos curiosas, eu e minha tia, a mistura a ferver na grande leiteira sobre a qual repousava, atravessada, uma colher de pau. Éramos proibidas, nós duas de sequer tocarmos o fogão para que a alquimia não desandasse.
     Eu ficava parada, mãos para trás, a contemplar o processo. A consistência, nunca repetida duas vezes. Os diferentes matizes por que o doce passava até se revelar em todo o seu esplendor lácteo.
     Não se recomendava, em sã consciência, consumi-lo quente. Mas quem, quem resistiria? a primeira porção, salpicada com canela, era saboreada ainda morna. Só à tardinha ele era guardado na antiga geladeira, do tempo do casamento de meus pais, onde repousava qual sultão.
     Nos dias subsequentes, o sabor e a consistência se encorpavam. Era um prazer duradouro e lento, visto que Irene só nos cedia uma pequena porção diária. Uma para o meu avô, precocemente arrancado de nós, outra para ela, a terceira para minha tia e a quarta para mim. Por essa razão, apenas quatro pratos e quatro lugares à mesa. Ela não admitia visitas em seu santuário.
     Após a morte de meu avô, uma das cadeiras foi retirada, um prato e um copo guardados. A mesa, tanto a de Niterói, quanto a de Friburgo, passou a ser "A Mesa das Três Mulheres."
     Toda essa emoção, essa sinestesia, esse amor por uma avó assaz peculiar, reavivados na brasa adormecida de meu coração de neta diante da visão de um mero prato...
     Quanto ao doce de leite, a "receita" e a magia se foram com ela.
     Vez ou outra aceito uma ambrosia, um espera-marido, mesmo sabendo que minhas papilas não reconhecerão jamais nele o sabor perdido. O sabor do tempo perdido...