Friday, January 26, 2007




ÚTERO

(Luz... Porto)


Ele sempre fora diferente. Nascera em um bordel de mãe bastante conhecida e pai incógnito. A mãe nunca entendera onde errara. Mulher da vida, embuchada aos quarenta? Logo ela, que sempre se cuidara, que nunca pegara barriga, nem doença ruim...
Mas de uma hora para outra viu-se grávida. As colegas estranharam, mas acabaram exultando com a notícia. Afinal, ela era a mais querida da casa. Alegre, bem-humorada e generosa. Todas, inclusive a Madame, ajudaram-na no parto e nos cuidados.
Ele nascera bem: forte e saudável. Era paparicado pelas moças que disputavam entre si para trocar-lhe a fralda, alimentá-lo e niná-lo. E ele dormia, plácido, embalado ao som de um bolero ou de um tango dos discos arranhados, entre fumaça e cheiro de bebida.
Não era propriamente sociável. não se enturmava muito com as outras crianças. Nem era de jogar bola, pular carniça ou soltar pipa. Mas era esperto, o malandro. Aprendia rápido. Começou a ler sozinho.
Aos onze anos, um cliente da casa, assombrado com os dotes do menino, conseguiu-lhe uma bolsa num internato de respeito. E ele não fez feio. Destacou-se, ganhou medalhas, prêmios. Dormia tarde, às vezes varava a madrugada, estudando.
Terminou o científico, prestou vestibular e arranjou um emprego. Trabalhava de dia, estudava à noite. Mudara-se para a cidade grande e levara a mãe junto. A dama da noite, agora aposentada, cuidava da kitchenette com esmero e dedicação. Não poderia ter recebido maior bênção que este filho.
Ele estudava e trabalhava; trabalhava e estudava. Teve algumas mulheres. Várias. Alguns casos tórridos. Mas nunca as trazia para casa. Sempre recorria a hotéis baratos e a outros expedientes.
Aos trinta e cinco, faltou-lhe a mãe. Ficou muito abatido. Mergulhou mais no trabalho. Já estava bem posicionado na empresa. Gerente, com MBA e tudo. Não morava mais na kitchenette. A mãe ajudara-o a escolher um dois quartos em um ótimo bairro da cidade. Mobiliara-o com capricho.
Só uma coisa o preocupava: as noites. Tinha muita dificuldade para dormir. No internato dormia à meia-noite e levantava-se às seis. Manteve este ritmo por muitos anos. Na faculdade já estendia-se até uma ou duas, debruçado sobre os livros. Após a morte da mãe, mais longas revelaram-se as madrugadas.
Tentou de tudo: puteiros (mas não tinham o aconchego do local onde fora criado), casas de massagem, garotas de programa (mas elas lhe davam náuseas), gueixas... Procurou psiquiatras: tomou ansiolíticos, antidepressivos, reguladores do sono. Fez sonoterapia, radiestesia, acupuntura. Recomendaram-lhe homeopatia e, depois, medicina ayurvédica. Nada! Apenas paliativos. Ganhava algumas horas que se perdiam no negror da solidão.
Solidão? Ah, por que não se casar? Quem sabe se com uma mulher ao lado... Tentou. Foi um desastre. Não que não gostasse de mulher, mas a convivência próxima, a intimidade cotidiana o exauriu. Separaram-se. Sem grandes mágoas. Não houvera, tampouco, grande paixão.
Foi ao Instituto do Sono. Fizeram tomografia, ressonância, eletroencefalograma, nada! E ele sempre a esconder o seu problema no trabalho. Um executivo sem dormir não estaria usando a sua inteligência emocional adequadamente. Só que isso já começava a incomodá-lo. Não estava mais tão produtivo nem tão sagaz quanto era.
E, em meio ao desespero, veio-lhe uma incumbência atroz: representar a firma numa convenção em Vitória. Acompanhado de um colega com quem dividiria o quarto. Tentou reverter a situação, de forma discreta. Não teve sucesso. Alegou que era aconselhável que dormissem em quartos separados: roncava muito, disse. Nada. O destino parecia-lhe inexorável.
Foi quando a Providência apiedou-se dele. Por algum desses erros inexplicáveis, seu bilhete não fora emitido e todos os vôos estavam lotados. O colega iria de avião e a ele caberia dirigir ou ir de ônibus. "Merda!", pensou. "Do jeito que estou vou acabar enfiando o carro num poste ou num muro! Só me resta o ônibus. Haja chão! Mais de oito horas de viagem!".
Muito contrariado, pegou o ônibus. Achou o banco duro, desconfortável. Tentou se acomodar. O ônibus roncou, a porta se fechou, o motorista deu a partida e ele...dormiu!
Quando deu por si o sol já ia alto e as pessoas desciam na rodoviária. Que maravilha! Nem em suas trepadas mais selvagens se sentira assim: revigorado, leve, um novo homem!
Brilhou na convenção. Conseguiu um aumento. A noite seguinte, passou-a em claro, mas o que era isto diante de um sono ininterrupto de oito horas? Ao voltar, não quis o avião. Preferiu o ônibus. Que paz!
Encontrara, por fim, o Caminho de Santiago, sem precisar ler O Diário de um Mago. Paulo Coelho não era a sua praia. Agora todas as noites dirigia-se à rodoviária e pegava um ônibus. A princípio, qualquer um. Depois foi se habituando à escala de horários. Embarcava às nove, descia à uma da manhã em outra cidade. Pegava outro ônibus que tinha parada ali, por volta de uma e meia. Às cinco, cinco e meia, estava novo em folha. Para ir à academia, antes de se vestir para o trabalho. Disfarce perfeito.
No início, motoristas e despachantes acharam-no doido, um louco varrido. Aos poucos acostumaram-se àquela figura bizarra. Não tinha preferência por trajetos ou por carros. Só não gostava dos carros-leito. Era-lhe mais difíicil conciliar o sono em meio a tanto luxo. Preferia os carros da classe executiva. Espremia-se na cadeira, encolhia as pernas contra a poltrona da frente e dormia como um bebê.
E assim se passaram os anos, as rugas, as promoções. Ninguém sabia de seu segredo e por isso, talvez, tenha causado estranhamento a notícia de um desastre na BR esburacada, abandonada pelo governo: dois ônibus chocaram-se violentamente. Vários feridos. Felizmente pouquíssimos mortos. Entre estes, um que morrera pois não acordara com a batida. Morrera sorrindo, em deleite, como se lhe tivessem finalmente aberto as portas do paraíso.
Dedicado a Darci Sarzenski que me iniciou no mundo maravilhoso das viagens noturnas.