Saturday, April 19, 2014

JANELAS AZUIS
(Luz... Porto)
"é de barcos sonhados que o mar se alimenta." Andre Bolivar



Pela janela azul pulsante
Fico a velar teu sono.
Ícones passam anunciando
Se estás acordado ou no leito.
A insônia por vezes te toma,
Tirando tua paz precária
E meu coração apertado,
Pressentindo tua angústia,
Bate em descompasso.

Pela janela azul pulsante
Tento tocar-te o rosto,
Fazer-te um afago,
Sentir-te a pulsação.
A pulsante janela que nos une
É a mesma que nos afasta.
Milhas e milhas de distância
Mares e rios a singrar
Em meu veleiro sem velas,
Mastros quebrados, quilha ruída.

Minha alma em sargaços
Perde o teu rastro.
Súbito desce a tormenta.
A janela se fecha
E caio em teu esquecimento.

QUADRINHAS
(Luz... Porto)
A Marco Antonio B. Ferreira



As mãos me pediste
Com tanto fervor.
Sem dedo em riste
Te faço o favor.

Mas cuida bem delas
Sem ser ciumento.
Eu vivo com elas
Desde o nascimento.

Não tenho mais pai
No campo terreno.
Não me arranque 'ais',
Me sejas sereno.

Não brica, não brinca,
Com meus sentimentos:
Minh'alma assim trinca
Com mais ferimento.

Poeta de ofício,
Tens minha atenção.
Não cries um vício
No meu coração,

Já tão combalido
Em tantas batalhas,
Já muito esculpido
A fogo e navalha.

Prezado amigo,
A ti eu confio
As mãos sem perigo.
Querido amigo,

Em ti eu me fio,
Te faço abrigo.
Contigo eu me rio,
Te levo comigo.

Meia arrastão
(Luz... Porto)



Cuidado, seu moço,
Com a desatenção.
Cuidado, eu te pesco
Com a meia arrastão.

Não é de Edu Lobo
Essa gravação;
Carrego incrustada
No meu coração.

Não seja tão bobo,
Me queira mal não.
Um beijo, um agrado,
Não fazem mal não.

Com pernas apeio
Em meu alazão
E parto pra longe
Da tua afeição:

Magrinha, fraquinha,
Quanta inanição!
Cuidado seu moço,
Com a meia arrastão.

Macondo
(Luz... Porto)



     Vão ver se estou em Macondo, disse o velho Gabo. Sentados ao redor da longa mesa da cozinha, entreolhamo- nos. "Mas já estamos em Macondo, sussurramos". Ele anda é meio esquecido, isso sim.
     Lá fora chovia. Chovia, chovia e chovia. Nossas almas ficavam lavadas e engomadas de tanta chuva. Só Aureliano reclamava. Água demais. As crianças, os cães, os gatos se divertiam pulando nas poças. Todos nos secávamos nas várias toalhas de linho tecidas por Pilar em sua roca e bordadas por sua avó. Era bom ter sempre um pano quente para nos abraçar a alma.
     Fantástica fora a descoberta do efeito dessa chuva: nossos cabelos, sempre rebeldes, cabelos nunca ficam do jeito que queremos. Com essa chuva ininterrupta eles passaram a se amoldar a nossos desejos. O sumo que escorria das flores nas copas das árvores nos abria um leque inimaginável de possíveis matizes para nossas madeixas.
     Quanto aos aromas, ai, que aromas! Flores com notas de frutas em fundos amadeirados. Cada um de nós escolhia o perfume que mais caísse bem ao nosso estado de espírito.
     Úrsula aprendera a fazer sapatos. Sim, sapatos. A chuva, de certa forma, limita as possibilidades se diversão. Sapatos de todas as cores, de diversos materiais, com texturas variadas, com os quais bailávamos até o dia raiar.
     Remédios preparava iguarias saborosas. Gabo era um bom garfo. Sempre havia um toque de alguma coisa, uma especiaria diferente a nos aguçar o paladar.
     E como passeávamos pelos rios.Decorávamos os barcos e cantávamos canções das avós de nossas babás. Gabo esboçava um sinal de aprovação, imerso em suas memórias que não compartilhava conosco.
     Nosso sono era povoado de sonhos fantásticos que eram contados à mesa. Amaranta era imbatível. Ninguém sonhava tão lindo quanto ela. Todos seus sonhos eram filigranados e os desenhos que deles saíam terminaram por cobrir-lhe a cicatriz da penitência auto-imposta.
     Estávamos naquele paraíso, mas Gabo parecia não se dar conta. Foi então que José Buendía resolver chamá-lo a si: "Gabo, ele disse em voz firme, porém suave. Lembra que as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a Terra".
     Gabo abriu os olhos, olhou a seu redor. Percebendo que não estava mais na Terra, mas sim em Macondo, foi tomado de uma imensa ternura por todos nós. E sorriu em paz.

Não é ninguém; é o carteiro
(Luz... Porto)


     Em meus guardados encontro uma foto esmaecida, embolorada. Resquício de um sonho que nem ousei sonhar: o de visitar minha penpal em Londres. Ela morava em bairro modesto, tinha espinhas e um cachorro. Chamava-se Nicole.
     Tempos outros, em que não havia internet. Esperava-se tudo pelo correio. E os Correios eram uma instituição de respeito. Conhecíamos os carteiros pelo nome. O meu era Sergio. Gentil, educado, interessado. Fazia o Segundo Grau no Joaquim Távora onde era aluno de meu cunhado. E, curioso, às vezes pegávamos o mesmo ônibus quando eu ia à universidade e ele fazia questão de me ceder o lugar, coisa que alguns namorados de amigas não faziam, nem ao me verem, esquálida, quase a desabar com tantos livros.
     O que foi feito de Nicole, o que foi feito de Sergio? Nem faço ideia. Será que alguma vez eles se lembram, ainda que vagamente, de mim? Tenho minhas dúvidas. Pois se nem alguns ex-namorados se dão conta da minha existência...
     Feliz era eu em um tempo quando, sem me dar conta, podia tocar o teto com as pontas de meus dedos... Quando sonhava com a lua, as estrelas, contempladas em silêncio no quarto degrau da escada da frente. Silêncio compartilhado por um gato - sempre havia um em minha vida.
     A lua, as estrelas, permanecem no céu. O gato, bem, foram vários: Ronrom, Erick, Osíris, Piotr Ilitch e Timtim. Agora tenho o Paco. E, pela primeira vez, duas meninas: Mia e Nina.
     De felicidade pouco sei. Só alguns lampejos. Um pôr-de-sol vermelho em São Francisco, uma cachoeira vez em quando, uma flor a me surpreender, o riso de uma criança. Talvez não tenha sido talhada para isso.
     Mas não abro mão de pequenos prazeres. Um que me remete à infância e à mocidade: a espera pelo carteiro, anônimo agora. Talvez por isso eu goste de comprar pela internet. Só para ter o gostinho da espera. Da espera do que, ao contrário do afeto, eu posso ter a certeza
de que virá...

Wednesday, April 16, 2014

SEMENTES DE MAÇÃ
(Luz... Porto)

     Meio-dia. Após um razoável período de trabalho de parto, ela nasce. Nariz perfeito, boca bonita, mas 'lábios grossos'. Puxara à família paterna, diria a avó. Quase careca. Dedos longos da pianista que não viria a ser. Simpática, risonha, rechonchuda. E dentro de si as sementes de maçã que, sem saber, guardaria numa das gavetas do escritório que não teria.
     Sementes de maçã contendo macieiras da Califórnia. Sementes que não semearia. Maçãs em projetos logrados. Logro, logro, lodo, mofo. Era nisso que resultaria aquela vida com projetos de sonho nem tão inocentes assim. Com linhas tão vermelhas a simbolizar a tensão constante que marcaria seus dias. "Tensão produz movimento", diria um dos astrólogos consultados. Mas há certas conjunções, certos arranjos planetários do micro ou do macrocosmos - quem há de saber? - que produzem apenas a estagnação. As linhas da mão tornam-se tão esticadas, mais esticadas que as de um violão ou violino às quais rompesse o mais suave toque de um arco.
     Da estagnação à inércia; da inércia à depressão, leva-se apenas um passo. Aquele tal à beira do abismo. E sementes estagnadas não brotam, não florescem, nem frutificam. Apenas emboloram, ficam ressecadas, encarquilhadas. Sementes-de-maçã-uva-passa. Sementes-de-maçã-maracujá-de-gaveta.
     Seria isso o que as minúsculas e quase imperceptíveis rugas ao redor dos olhos significariam? Que o tempo passara por ela e que ela, Bela Adormecida de Tchaicovskiy, não mergulhara nele, não nadara contra a corrente, apenas sobrevivera, subvivendo? Não se tornara importante, não tivera destaque entre seus pares ou seus ímpares. Não gerara filhos, não haveria de transmitir a ninguém, a quem certamente amaria tanto, "o legado de nossa miséria ". Não escrevera livro algum. Nem ao menos plantara uma árvore. Sequer semeara as sementes de maçã.
     Sim, pois, apesar da dificuldade dos solos, dos solos arenosos, dos barrentos, dos pedregosos, dos cheios de espinho, poderia ter seguido a lição de Cristo e perseverado na semeadura. Bastaria que uma mísera semente caísse em terreno fértil para que tivesse acesso à eternidade, ou, ao menos, a um vislumbre dela. Uma simples macieira, ainda que  desse uma só colheita, um único fruto. Poderia ser o Fruto Proibido do Gênesis, o Pomo da Discórdia de Éris, responsável pela Guerra de Troia, a Maçã no Escuro de Clarice, não importa. Algo seria. Algo cuja memória e presença perpassasse os séculos, costurando-os ou remendando-os.
     Não. Não aprendera nada. Não pusera em prática as parábolas. Quem observasse sua vida medíocre suporia com toda a certeza que nunca lera um sermão sequer de Vieira. Vieira! Os tomos preciosos tomados de empréstimo àquela sacrossanta biblioteca particular... As noites que passara acariciando os livros com encadernação azul-rei, letras douradas, papel precioso. O quanto ela se deliciara com as palavras, as ideias, a verve inflamada!
     Talvez faltassem em seu cérebro os "neurônios-delgados" citados por Jorge Mautner, os tais que, à semelhança do intestino de mesmo nome, seriam responsáveis pela absorção dos nutrientes. No caso, nutrientes cerebrais... Talvez seu cérebro fosse composto por uma só víscera, aquela exaltada por Vinícius em detrimento de outras, como ironizava João Cabral.
     Em sua tempestade cerebral, só conseguiu fazer bem uma coisa: amar. No sentido franciscano. O amor se-lhe esvaía por entre os dedos, pelas lágrimas, pelo suor e sangue. Jorrava de suas palavras impensadas, escorria por seu salário e não havia retorno. O vermelho das linhas de sua carta natal, representadas ciclicamente em sua menstruação longa e abundante, talvez indicasse antes a vida que se-lhe fugia do que a tensão que a mantinha alerta e viva. O vermelho de suas extremidades talvez fosse uma última tentativa de produzir enfim as maçãs, que, largadas em um canto de sua gaveta mais íntima, apodreceram e tiveram degredado o seu DNA singular.