Thursday, May 15, 2014


Plâncton
(Luz... Porto)


No ventre úmido do mar sem fim
Plantei a bandeira de expatriado,
Só eu comigo e os comigos de mim.
Guardo meu coração espatifado

Num cofre bem longe da superfície.
Dragão marinho vela meu segredo.
Alimentei-o, orientei, disse-lhe:
Vela-me o sono, que eu não tenha medo.

Espanta o estrangeiro, defende a paz,
Afasta os grandes peixes e cardumes,
O de longe em meu sofrer se compraz.

Deixem-me só e em paz com meus queixumes.
Nem quero mais saber de outro rapaz
Senão eu morro louca de ciúmes.

Wednesday, May 14, 2014

SEM PAZ
(Luz... Porto)


Se trago calmaria, amigo,
Isso muito me apraz.
No turbilhão em que vivo
Desfruto precária paz.
Não convivo bem comigo,
Nem tampouco com os demais.
Se, a teu remendado órgão
Um acalanto minha alma traz,
Perceba a grande ironia:
Eu, tempestade, naufrágio,
Recebi do Criador essa missão:
Levar alento, desalentada,
Ao coração do meu irmão.


Correnteza
(Luz... Porto)


Devagar o Tigre chega à flor d'água.
Espreita, esperto, espanta as rãs.
Súbito mergulha, amansa o curso
Do rio que corre, correnteza vã.
E dócil busca encurralar o Peixe
Escorregadio, entregue à sua solidão.
Garras vorazes, presas afiadas
Vê, ondulante, o peixe tremeluzir.
Quer logo saciar seu apetite,
Integrar, inteirar caça e caçador.
Estranho amor doente felino
Seres esdrúxulos não se beijam...
O Peixe célere escapa nas profundezas,
Submarino, sub-humano, sub-caridoso.
Resta, afogada, submersa a Fera morta.

Sunday, May 11, 2014


EDUARDO
(Luz... Porto)
À memória de Eduardo Villas-Boas Thomé Torres



  Essa noite eu sonhei com Eduardo. E ganhei cinco anos e pouco a mais. E tirei o peso desses cinco anos. Aquele sábado, véspera do Dia das Mães em 2011 fora apagado. Talvez até aquela semana desagradável.
  Minha mãe fora internada no Procordis, eu acho. O CTI não tinha vaga, então foi para a unidade de pacientes semi-intensivos. Fui avisada na terça à noite. Trabalhava em São Gonçalo. Os alunos me viram empalidecer e ficar tonta. Que medo de minha mãe ter complicações como as que teve meu pai! Dei aula chorando.
  Mamãe ainda não falava normalmente quando a visitei na quarta. Reclamou da comida e do barulho. Eram muitos pacientes. Ela não conseguia dormir. Na quinta, foi para o quarto. Foi a vez de nos revezarmos. Por conta do trabalho, minha escala foi para o sábado. Antes de sair para o hospital, tive uma das minhas quedas. Coração apertado. Não falei com ninguém. Lembrei-me que a anterior tinha sido um desmaio. Na mesma hora em que minha irmã recebia a notícia de que tinha um tumor...
  Passei a noite com ela, assistimos à novela. Lá pelas dez ela pediu para dormir. Eu não conseguia. O coração estava aflito, mesmo sabendo que ela teria alta para passar o Dia das Mães em casa. Acabei cochilando. Conversei com o neurologista e coisa e tal. Ela fez uma avaliação mais detalhada e foi se recuperando.
  Uns meses depois bateu uma saudade do meu primeiro namorado. Vontade de saber dele, de ter notícias. Fucei a internet. Nada. Fui colocando o nome dos irmãos. Quando cheguei no nome de Eduardo, deparo-me com uma notícia horrenda. Um desastre de carro na Via Lagos vitimara o rapaz, ferira gravemente sua mulher, mas a filha de quase um ano saíra totalmente ilesa. O acidente ocorrera no sábado, véspera do Dia das Mães...
Perplexa, ferida, comentei com minha irmã, achando que fosse uma novidade. Não era. As duas outras tinham comparecido à missa de sétimo dia com o meu cunhado. Deram pêsames à família, confortaram o irmão e nem me avisaram. Com medo de uma queda, suponho. Mas fui alijada daquele momento tão especial, tão doloroso. E nem sequer mencionaram meu nome.
  Eduardo foi meu amigo de fé dos oito aos dezoito, creio. Nas férias de Friburgo. Éramos inseparáveis. Corda e caçamba. Cinema, pique, bicicleta, crianças. Fui babá de muitas e, quando via, lá estava ele a meu lado. À noite, tomávamos sundae. Um sundae especial que o dono do Breno’s, lanchonete recém-inaugurada, preparava para ele. Muiiiiita calda de chocolate, castanhas e quase nada de sorvete. Eduardo era desses que fazem amizade ou camaradagem com todo mundo. Eu, na condição de “acompanhante”, tinha o privilégio do tal sundae. Comíamos pipoca na praça. Uma pipoca inesquecível, feita no vapor. Também visitávamos a casa dos tios, no Parque Dom João VI. Frequentávamos, às vezes, a piscina do Vale do Luar. Conhecemos os Beatles juntos. Pegávamos a chave do carro de minha irmã e ouvíamos as fitas que ela tinha. Também ouvíamos música italiana.
  Uma coisa engraçada era que, nesse tempo, eu ganhava UM par de sandálias para as férias. Normalmente vermelhas. Elas deveriam durar bastante. Pois o Eduardo me arrebentou várias. Devo ter reclamado da primeira vez. Depois, nem ligava. Não que ele fosse agressivo, imaginem! Acontecia durante as brincadeiras de pique e coisa e tal. Na última vez, ele pegou um pedaço de pau para demonstrar uns golpes de Tae Kwon Do. Eu estava na mira e me assustei. Fiz um movimento de defesa e perdemos o equilíbrio. Fomos ao chão e.... mais uma sandália. Quer dizer, menos uma.
  Inventávamos brincadeiras, festas na travessa, travessuras, algumas um pouco impublicáveis. Certo ano, quando cheguei a Friburgo os meninos já estavam. Os vizinhos reclamavam da falta de luz. Havia um poste com a lâmpada quebrada. Veio a Companhia e trocou. Foi então que vi uma espingarda de chumbinho... Para bom entendedor... Ri e perguntei aos irmãos: “E agora?”. “A gente quebra de novo. Mas você pode ajudar.” Com meu ar de boa menina – e eu era mesmo – conversava com as vizinhas que poderiam flagrar o delito. Puxava uma prosa interminável.... Vinha o tiro e, à noite... “Não! Outra vez? Serão moleques?” Eu sugeria que a lâmpada podia ficar muito quente e com a chuva da noite explodir. Acontecera na varanda lá de casa. A mentira não era inteira, pois de fato vira acontecer lá em casa. Com isso, tivemos boa parte das férias em uma travessa semi-iluminada, o que muito favorecia nosso pique-esconde.
  Em outro Carnaval, organizamos a Festa do Penico. Eu já não era tão garota assim. Uma obra em uma das casas deixou um vaso sanitário para trás. Pensamos besteira. Ele foi guardado no quintalzinho lá de casa. Por alguma sincronicidade, mamãe descobrira entre uns guardados o penico que eu usava em criança!!!! Mamãe guardava umas lembranças muito exóticas de cada filha, mas isso é outra história. Perto do Carnaval, acionamos as casas de cima, a da minha avó e a exatamente oposta, que minha irmã mais velha alugara para as férias. Os meninos estenderam uma corda, de janela a janela, cruzando a travessa. No meio, o peniquinho azul. Cercando o objeto, os dizeres: FESTA DO PENICO DA LUZIA!!!!!
  Na sexta, limpamos o vaso, compramos uma cabeça de cera e um charuto em uma casa de produtos de macumba, compramos um chapéu no DRAGÃO. Eduardo e o irmão fizeram olhos com pedaços de espelho que eu, supersticiosa, me recusei a quebrar. Colaram na cabeça. Pusemos o chapéu. Um falso Panamá. Fizeram um buraco na boca onde o charuto foi colocado. Aceso. De vez em quando alguém dava uma baforada para reacende-lo. Compramos flores perto da funerária. Batizamos a cabeça com o nome de um vizinho que brigara com um dos meninos. Teve até bailinho. E todos olhavam para o penico pendurado... Um mico a que me submeti de bom grado. Depois veio a chuva, a corda cedeu e na quarta-feira o caminhão de lixo levara, sem saber, meu peniquinho azul...
  Há uns nove anos, ele passou de carro na travessa, buzinou e falou com uma vizinha, também já falecida. Ficou um pouco, conversou com quem estava lá, perguntou por mim e seguiu viagem. Cerca de meia hora depois eu cheguei para passar o carnaval na travessa. E fiquei na esperança de reencontrá-lo assim, por acaso. Pois é. O acaso não quis o encontro.
  Às vezes sonho com ele. Essa noite foi bem nítida a visita. Eu telefonava à sua procura e não o achava. Aí ele chegava com seu sorrisão e falava: "Procurando por mim? Que bobagem. Tô aqui." E a gente se abraçava e sentava na janela da casa de Friburgo, nosso lugar favorito. Conversávamos. Falávamos besteira. E, à falta de uma caneta e de papel, eu pegava dois palitos e jogávamos jogo-da-velha em sua barriga super queimada, como já o fizéramos. Nos sorrimos e eu acordei. Acalentada, mas com lágrimas nos olhos.


Dia, mania...
(Luz... Porto)

À Norma Thereza Velloso Porto.


Conheci Sueli Costa através do Quarteto em Cy. Não tinha ido ao show, apresentado na Reitoria da UFF. Era uma segunda-feira e tinha prova de OSPB na terça. CDF, quis ficar estudando. Minhas irmãs foram. Houve uma confusão danada por conta da Censura, o show foi interrompido por causa de alguma música. Cyva, Soninha e Dorinha Tapajós confabularam. Cynara voltou ao palco apresentando uma canção inédita da Sueli com letra de Paulo César Pinheiro. Apaixonei-me na hora. Claro que minhas irmãs conseguiram, não sei como, uma fita pirata desse show. Que eu praticamente furei de tanto ouvir. A canção? Cordilheiras. Melhor interpretação que já ouvi.
Fissurada pela boa MPB, como sempre fui, saí à cata dessa Sueli Costa. Descobri canções que Bethânia cantara e gravara, interpretações da Elis e, como dizem que o universo conspira a favor, a MPB FM, única rádio que eu ouvia, fez o lançamento do segundo LP da Sueli em uma tarde de sábado. Entre as várias faixas, havia uma que me remeteu à minha história: Pedra da Lua. Que não era dela, e sim uma parceria do Cacaso com Toninho Horta.
Um trecho dizia:"Minha mãe no seu piano morrendo dentro da tarde, com seu sorriso mais puro. Toda vestida de branco, velando os meus passos, velando os meus tropeços. Menino, não morra cedo. Menino, não chegue tarde e dia, folia".
Bem, minha mãe não vestia branco e não lembro se trazia o seu sorriso mais puro ao tocar o seu piano. Ela, concertista, abandonara a carreira e, grave, o piano, em prol de suas filhas. Dezoito anos sem tocar e um dia ela volta. Mas eu tinha uns dez anos. Era egoísta como as crianças de dez anos sabem ser. O piano ficava na sala junto com a TV. O horário do piano era o Ângellus e coincidia com... Get Smart! Agente 86. Covardia.
Saíam discussões, mas, não sei se a mãe ou a pianista foi mais esperta. Uma tarde ela me toca Jeux D'eau de Ravel. Calei-me. Calou-se o mundo. Só via a minha mãe ir e vir no teclado num frenesi lindo. Só via o rio a correr, as quedas d'água. Mal respirava para não perder nota alguma. Êxtase total. Conhecera o paraíso. E ele tinha vales de onde jorravam o leite e o mel e as águas sagradas.
Do alto de minha autoridade de filha caçula, disfarcei as lágrimas, ela estava de costas pra mim, o nariz fungando era facilmente atribuído à minha alergia, perguntei o nome da música, de quem era, essas coisas. Ela me respondeu acrescentando que era uma peça 'impressionista'. Impressionada fiquei eu, mas não dei o braço a torcer e disse algo como:" Tá, você toca o seu piano, mas tem que tocar Jeux D'eau todos os dias". Ela argumentou que era uma peça trabalhosa, eu retruquei que perdia Get Smart (os fãs da série sabem bem o que isso significava). Por vários meses eu desfrutava sozinha dessa virtuose. Meu pai e minhas irmãs trabalhavam e/ou estudavam no horário.
Como o Destino gosta de nos maltratar, mamãe passou a ter sérios problemas na coluna e o piano emudeceu. Emudeci também. Com o tratamento, fisioterapia e natação, ela voltou a tocar. Aos poucos. Só que Jeux D'eau exigia demais dela. Para amenizar minha tristeza, ela tocava Reflets Dans L'eau de Debussy. Não era a mesma coisa, mas valia o esforço. E veio Kételby com o Mercado Persa, No Jardim de um Templo Chinês. E outras peças além de Chopin (acho que o preferido dela), Beethoven e Lizst.
Nova brincadeira. Veio a Toxoplasmose e ela acabou perdendo a visão de um olho. Não conseguia mais tocar lendo a partitura. Só de memória. Ela se lembrava de muita coisa bonita, mas queria mais.Passou a compor. Registrava tudo em K7s que se perderam. O piano não ficava mais na sala e sim num quartinho perto da garagem que meu pai mandara construir. Os vizinhos usufruíam da música, Dr Nelson Lamy chegou a convidá-la para tocar em sua casa e flagrei vários moradores do morro, ao pé do qual morávamos, parados e embevecidos.
Com a mudança de horário, várias vezes adormecia para uma soneca ao som do piano. Os bichos também ficavam quietos ao redor.
Não posso ouvir Jeux D'eau sem chorar. Mais ainda, sem ver, em minha alma a concertista vestindo traje de gala para a plateia solitária de sua maior fã nunca revelada.