MIOPIA
(Luz... Porto)
"Não percam o foco",
Dizia a palestrante, compenetrada em seu terno rosa-chá.
"Mantenham sempre à vista
A meta que vocês desejam alcançar.",
Continuava a moça,
Prestes a comemorar mais uma vitória profissional.
"Como não perder o foco?",
Indagava eu, mera espectadora à parte.
Como não perdê-lo se meus olhos,
Míopes e presbitos,
A toda hora me enganam, me traem,
Vendo castelos e palácios de cristal
Onde só há choupanas e casas de pau-a-pique,
Vendo príncipes e princesas
Onde só habitam cáftens e rameiras
A zombarem de minha alma, irrequieta e tola.
Como não perder o foco
Se há tantas vitrines para se olhar,
Tantas bocas e pernas para se perder,
Tantas sereias a seduzir
Com seu canto de morte?
Meu foco há muito foi perdido.
Perdeu-se há muito tempo.
No tempo em que velas tremeluzentes e assustadoras
Velavam minha mãe em vida
Que, a qualquer momento, morreria por meus pecados
Naquele quarto opressor, abafado e fétido.
A leitura e a descoberta do mundo
À luz de cera, parafina e pavio
Deixaram para sempre a marca
Dos que, além de decifrar palavras,
Têm de completar o texto com hieróglifos
E ilustram-no com fantasmas e sombras espectrais.