Saturday, December 24, 2005


SUBMARINA
(Luz... Porto)

A concha misteriosa
Carrega em seu ventre ferido
A farpa que se tornará pérola.
O vento, soprando, gemendo, sussurrando,
Quer penetrar no ventre virgem
E fecundá-lo com estrelas-do-mar.
Arrastá-lo para o olho do furacão
E individuar a menina em mulher,
Sem pai, sem pátria, sem país.
Animus e anima em coito frenético,
Pulsante, visceral, abstrato.
Do ventre do caos nascerá uma estrela
Num parto dilacerante, doloroso, pura agonia
Da vida vivida, imaginada,
Tornada real por nossos olhos
Ainda reféns da caverna platônica.

Wednesday, December 21, 2005


MIOPIA
(Luz... Porto)
"Não percam o foco",
Dizia a palestrante, compenetrada em seu terno rosa-chá.
"Mantenham sempre à vista
A meta que vocês desejam alcançar.",
Continuava a moça,
Prestes a comemorar mais uma vitória profissional.
"Como não perder o foco?",
Indagava eu, mera espectadora à parte.
Como não perdê-lo se meus olhos,
Míopes e presbitos,
A toda hora me enganam, me traem,
Vendo castelos e palácios de cristal
Onde só há choupanas e casas de pau-a-pique,
Vendo príncipes e princesas
Onde só habitam cáftens e rameiras
A zombarem de minha alma, irrequieta e tola.
Como não perder o foco
Se há tantas vitrines para se olhar,
Tantas bocas e pernas para se perder,
Tantas sereias a seduzir
Com seu canto de morte?
Meu foco há muito foi perdido.
Perdeu-se há muito tempo.
No tempo em que velas tremeluzentes e assustadoras
Velavam minha mãe em vida
Que, a qualquer momento, morreria por meus pecados
Naquele quarto opressor, abafado e fétido.
A leitura e a descoberta do mundo
À luz de cera, parafina e pavio
Deixaram para sempre a marca
Dos que, além de decifrar palavras,
Têm de completar o texto com hieróglifos
E ilustram-no com fantasmas e sombras espectrais.


DESAPONTAMENTO
(Luz... Porto)
"A minha alma partiu-se como um vaso vazio".
Não, Álvaro, tua alma talvez tenha outrora composto um vaso.
A minha nunca o fez.
Já nasci com a alama torta, fragmentada,
Espatifada em milhares de cacos disformes
Que tento, em vão, unir num quebra-cabeças cósmico.
Mas sempre me faltam pedaços...
Pedaços que foram reduzidos a pó
Ainda durante a minha gestação em útero hostil.
Período em que eu, pretensa pedra filosofal,
Fui cozida em forno ácido
E só resultei em nigredo...
Não, Álvaro,
Não houve criada descuidada que, involuntária,
Derrubasse-me a alma do topo de uma escada.
Não houve deuses no parapeito
A fitá-la, tolerantes.
Não houve criança que a acertasse
com um estilingue mal calibrado.
Não houve gato que, esquecido preso por seu dono,
Nela esbarrasse por medo.
Não houve nada.
Não houve ninguém.
Apenas um bocado de argila
A que faltava o equilíbrio de seus componentes químicos.
Apenas um forno sem o Fogo da Transmutação
E a brasa da humanidade e da compaixão.
Apenas a boca sem dentes do nada, do nunca mais...
apenas alguém que, sem o saber, deu em chuvoso.

Sunday, December 18, 2005


NOCTÍVAGA Nº 2
(Luz... Porto)
Três da madrugada...
Vagueio pela casa
Qual Nosferatu insone.
As luzes apagadas
Contrastam com a luz esmaecida e pálida
Que penetra pelas cortinas puídas
E formam espectros na parede branca,
No teto empoeirado
E no chão de tacos
Onde cera de vela se acumula.
Esbarro em móveis desproporcionais
À sala.
Móveis usados, reaproveitados
De casas desterradas,
Exiladas em Praga, Viena, Quênia, Baviera.
O mármore sem vida
De minha pele exangüe
Enche-se de manchas roxas.
Roxas como minhas olheiras,
Óculos de segunda pele.
Vislumbro a mesa de centro
Apinhada de CDs
Cujas capas não consigo distinguir,
Restos de pétalas mortas
E cinzas de incenso já usado
Misturam-se ao olor
De velas perfumadas
Queimadas à tarde.
Súbito minha alma esbarra na tua, distraída,
Na cozinha, em meio à tábua de passar,
À geladeira e ao fogão.
Não me disseste que virias visitar-me.
Não sabia que tu, criatura da luz, de hábitos diurnos
Também sonambulavas errante
E te dirigias, célere,
A outros espaços
Só para poderes me ver
E tocares meu espectro
Em meio à noite eterna de nossas existências
Condenadas à clivagem,
Ao hiato, à separação.
Lua e sol.
Eclipse que só, de tempos em tempos,
Permite que as fímbrias das tuas vestes
Rocem, de leve, as minhas...


Auto-retrato
(Luz... Porto)

Um rosto assimétrico. Não poderia ser diferente. Cabelos curtos numa tentativa de recuperar os seus nove ou dez anos de idade, quando ainda pensava que haveria esperança, mas que se perderam no sumidouro inexorável do tempo. Os raríssimos fios brancos já teimam em aparecer. Um pouco de ballaiage não faz mal. Afinal fora claro na infância. Os olhos castanhos até sorriem por trás dos óculos Marília Gabriela. Num segundo exame, contudo, parecem negros como um poço sem fundo, como a solidão das noites eternas. O nariz, ah o nariz, que sempre fora tão elogiado, permanece o mesmo, assim como a boca carnuda que agora pinta de encarnado com orgulho. O pescoço londo é cercado por uma inevitável gargantilha prestes a sufocá-la. Estranho esse fascínio por gargantilhas... Ela, chegada a uma falta de ar, respira bem e livre dentro de uma coleira. Das orelhas pendem brincos. Longos e coloridos como se tentassem alongar os cabelos em peruca de pérolas. A expressão se ameiga embora o rosto já exiba as linhas de um destino que cumprira, mas não escolhera. Na testa, escondida pela franja, o eterno franzir a perguntar: "Por quê?", "Quem?", "Como?", "Para quê?"...