Friday, December 05, 2014

QUERIDA CLARICE


(Luz... Porto)



Voltavam do cinema. Ah, há quantos anos não ia a uma sala decente... Foram ver o filme do Woody Allen, cineasta muito da preferência dela e do gosto dele. Sentiu uma saudade sem limites da juventude, dos tempos em que havia filmes para se ver duas ou três vezes por semana. Nada dessas salas caríssimas com pipocas absurdas. Ia com namorado, com amigos, sozinha.
Fora bom reencontrá-lo. Depois de tantos anos. Não sabia bem como se comportar. Imaginava que ele também não sabia. Devia ser imaginação dela. Tudo já se acabará há décadas. Ficara, contudo, nele uma porção da mocidade dela, como, estava certa, ficara nela uma pitada da juventude dele.
A despeito de algumas ruguinhas de expressão, de poucos fios brancos e de alguns quilos adquiridos no percurso, estavam bem para a idade. Cronos não fora tão cruel com eles. Ou fora? Sentada nos fundos do ônibus saculejante, constatava que Saturno era mesmo impiedoso. Talvez ela não tivesse feito um bom acordo com ele. Ela não soubera aproveitar a vida. Havia sido tola, displicente. Nisto sentiu uma mão em sua coxa. Haveria alguma brasa adormecida? Nada. Ele adormecera profundamente.
Súbito sentiu-se observada. Procurou, procurou e não achou ninguém. Até que viu. Os olhos de Clarice. Em uma bolsa com livros, supunha. Aqueles olhos inesquecíveis que ela nunca vira ao vivo perscrutavam-na. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. O ônibus estava no Jardim Botânico. Pensou no cego, nos ovos, em AMOR. A epifania vivida por um personagem banal ao se deparar com o inusitado. Inusitado para o personagem. E a forma como conhecera o conto. Primeiro semestre da pós. Uma professora bastante peculiar que começara a lê-lo e o interrompera com a pergunta:" Em que dia você foi mais feliz?" Após alguns relatos, a música INVERNO, de Adriana Calcanhoto. E o aperto no coração para não chorar.
Ela também não sabia em que local largara o Leão que sempre cavalgara. Custara a descobrir que o Destino sempre a quisera só, barco embriagado ao mar. Barco que não sabia nadar. E as centenas de cartas escritas a ninguém que foram ficando pelo caminho, em rascunhos, bolsas, guardanapos? O inverno continuava glacial. Sempre fora glacial para ela.
Tentou desviar os olhos, mas Clarice a hipnotizava. A Maçã no Escuro, GH. Não. Ela não completara o ciclo. Não fizera a comunhão com o pior de si, não iluminara a sua sombra. Não comera a barata. Precisava ainda da muleta, da terceira perna, como GH. E mais, sentia-se como a heroína de A Imitação da Rosa. À beira de uma crise, controlada por remédios, conversas. O que a ligava à vida era um fio tênue, prestes a se partir.

A essa altura lágrimas quentes lhe escorriam pela face, formando dois rios por sobre o blush. Pouco se lhe dava se era olhada por outros passageiros. Só lhe importavam os olhos de Clarice. Que não desgrudavam dela. E o ônibus não chegava ao destino... E o companheiro adormecido. A agonia foi em um crescendo. Uma moça que estava em pé ofereceu-lhe água. Ela, que era cheia de nojinhos, aceitou. Sorveu-a em graves goles. Está melhor? Posso fazer algo mais? Não, obrigada. A água descera suave e fizera brotar uma flor em seu peito congesto. Coisas de Clarice, pensou. E a ucraniana parecia lhe sorrir enigmática.
Pouco antes do destino, ele despertou. Não percebeu nada. Não era dado a perceber o que não se passava diretamente com ele ou o que não viesse a interferir em sua vida. Trocaram algumas palavras tontas. Desceram e se despediram.
Ela chegou à casa, acariciou a flor e foi escrever mais uma de suas cartas. Essa, porém, com destinatário. "Querida Clarice..."