Monday, September 15, 2008





Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão
-Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes
para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído
Alberto Caeiro



Des Em Carne Ação
(Luz... Porto)


Dizem que quando um espírito desencarna, ele é recebido por espíritos amigos que o guiam em direção à luz. Quando a morte é súbita, porém, o espírito custa a acreditar em sua mudança de plano e teima em vagar pela terra, tentando interagir com os entes queridos ou com aqueles com quem compartilha questões pendentes.
E o amor? O que acontece quando um amor desencarna de nós? Às vezes é tão lento o processo que nós nem lhe percebemos a ausência. Mas quando a ruptura é brusca, ânfora arremessada do alto do balaústre com toda a violência, ficamos atordoados. Não sabemos o que fazer. Continuamos com aquela alma que experienciávamos como gêmea, colada à nossa. Não a alma verdadeira, mas a suposição da alma. Como diz Chico Buarque: “dói latejada, é assim como uma fisgada no membro que já perdi”.
Sentimos as mesmas coisas que antes: qualquer almofada, bolsa, travesseiro, é o corpo amado que enlaçamos com ternura. Conversamos com a alma de nós desprendida e como ela já quase não nos respondia, mal percebemos a sua falta.
Ao passearmos, tudo nos faz lembrar o parceiro partido. São lugares, melodias, paisagens, anúncios do hotel em que planejávamos passar o tão esperado feriadão. Até o toque do celular do taxista que nos transporta é a música de um segredo especial só partilhado pelos dois. Dois que críamos um. Achávamos, jurávamos que seria para sempre, que seríamos indissociáveis. Talismãs foram comprados, anéis, berloques com meio-corações. O nome, o sabor, o suor, o cheiro, o gosto do outro já corria em nossas veias qual misteriosa e intensa pororoca alquímica.
Passamos por vitrines e notamos tudo o que ficaria bem no ser amado, tudo o que lhe poderia interessar, cada graveto com que nós, marias/joões-de-barro teceríamos nosso ninho de amor. E não percebemos que, no ninho oco, nem vestígio de ovo, nem pena de sabiá.
O Forever que compartilhávamos não passa agora de um “Never more!” do corvo de Poe. As lembranças? Varrê-las para debaixo do tapete da sala nua? Nós, zumbis errantes, vagamos pelas noites, com nossa carcaça autômata, nossa alma esfrangalhada e o terrível fantasma do outro/nós a nos arrastar pelas ruas com seus grilhões impiedosos.
Já ouvi, certa vez, a teoria de que esse mundo é obra do diabo, ou que, ao menos, é ele quem nos governa. Isso explicaria tanta coisa! Até káritas, essa virtude teologal transmutada em amor carnal, não passaria de ilusão do demo para nos enganar. Seria o nosso “pão e circo” nesse coliseu de horrores em que vivemos.
Deveria eu ter ouvido o conselho de Ary Barroso para Maria Rosa, a mulher envelhecida que trajava andrajos feitos com retalhos de seus melhores vestidos/amores: “Vocês, Marias de agora, amem somente uma vez pra que mais tarde essa capa não sirva em vocês.” Tarde demais. Ela já me embala qual manto dessacralizado de saudade.