Sunday, November 12, 2006


Memória Antiga
(Luz... Porto)
Já nascera amaldiçoada.Ao reencarnar não beber do Letes.Não o suficiente.Sua maldição?Uma memória inexorável,quase indelével.
Neta de Irene,não herdara da avó o atributo semântico de seu nome:Paz.Como ter paz com toda essa memória?Como,se,no meio da noite,acordava com a lembrança de um carnaval,uma prova,uma briga de amor,uma fivela de sapato?
Para conciliar o sono,não contava carneirinhos.Lembrava-se das principais comemorações:natais,aniversários,réveillons e fazia mentalmente a lista de roupas que usara em cada uma,a lista de convidados e até os presentes que ganhara.Cantava para si mesmo as trilhas das novelas a que assistira,começando pelo ladoB,sempre o seu preferido.Em meio à cantoria,adormecia.
Adormecida,sonhava.Compulsivamente.Lembranças de outras vidas?Sabe-se lá!Pela manhã acordava exausta,deprimida ou exultante,conforme o sonho que sonhara.Sonhara,não:vivera.Ao acordar,tudo estava nítido,ao vivo,a cores e a cheiros.também possuía o seu baú pessoal de sonhos e pesadelos.
Não tivera problemas na escola.quando solicitada a decorar capitais,sabia-as todas de cor.Até as da África e de uma remota Ásia.Taxonomia vegetal também decorou.Sem querer,meio que por acaso.Nomes de artistas não os decorava pois a miopia dificultava a leitura dos créditos em letras miúdas.Nomes de personagens tampouco a atraíam,exceto por razão desconhecida.Nunca se esquecera de D. Plácida,em Brás Cubas,mas jamais conseguira associar Capitolina à oblíqua Capitu.
Conhecia os colegas de turma pelo nome e sobrenome.Até os colegas de outras turmas.Jogar Detetive com ela era um saco.Lembrava-se de cada Senhorita Rosa,de cada candelabro,de cada salão de Jogos.Dificilmente perdia.Só não era imbatível no Buraco porque jogava sempre com seu primeiro namorado e isso distraía sua atenção.
Poemas,não os decorava.Uma defesa pessoal para que sempre soubessem a inéditos.Tampouco deixava que a caixa de Pandora onde recolhia suas lembranças amorosas liberasse detalhes dos corpos dos amantes que tivera.Tais detalhes lhe surgiam,às vezes,em sonhos ou em traslados de ônibus,entre uma cidade e outra.Bastava uma crista aqui,um nariz adunco acolá,um dente meio torto para que se visse tomada de inexplicável nostalgia,por vezes embaraçosa.Tinha de tomar cuidado pois um reencontro poderia soltar o fecho da caixa e a memória surgiria fresca e rubra como o Pomo da Discórdia.Um deslize do amante,uma desatenção,uma olhada de esguelha para um relógio para que a comparação se fizesse inevitável.Quase sempre o que seguia era desastroso e ela seguia em frente sem explicar por que não seria mais possível (detestava tocar em detalhes íntimos).Nem às paredes de seu encéfalo confessava as misteriosas razões que variavam de uma palavra dita em má hora,um hálito rescendendo a café ou a cigarro a uma simples troca de loção de barba.
Prestou concurso para ser burocrata.Um dinheirinho extra não faria mal às suas expectativas de prosseguir os estudos.Passou e logo tomou posse.Mas não suportava a burocracia.Quando se deu conta,já conhecia os advogados e reclamantes pelos números dos processos.Certa vez,recolhida à máquina de escrever,com cólicas incômodas,passou o turno inteiro ajudando seu colega,chefe de protocolo, a localizar processos para a inserção de petições.Ele cantava o número e ela dizia:"sob a mesa de fulano","na cadeira à esquerda da sala da juíza","na caixa de entrada de fulana".Antes que surtasse de vez,pediu demissão.Passou a trabalhar com pessoas.
De seus sonhos incessantes,passou a fazer trabalhos exóticos.Colagens,esculturas (?),desenhos,roupas em que jogava tinta,cola,customizando-as,poemas.Nada artístico,mas tudo catártico.Guardou para sempre consigo o caleidoscópio que confeccionara verde com retângulos de espelhos e paetês.Caleidoscópios sempre a fascinaram,pois,dizia-se,permitiam um número infinito de combinações.
A memória aquietou-se-lhe.Aprendeu a viver com ela e com seus incontáveis sonhos que,soubesse ela bordar,bordaria em véu diáfano,como Penélope à espera de Ulisses.Trabalhou muito,cuidou de seus doentes - não deixava que uma só dose de medicamento se perdesse.
Casou tarde,após um ciclo completo de Saturno e mais algumas quadraturas.Agradavam-lhe as coisas duradouras.A distração do marido,ela a compensva e ele a acalmava,fingindo prestar atenção às narrativas de seus incontáveis sonhos.A princípio,ela reclamava,depois percebeu que não fazia diferença.Cabia a ela contar.E isso ela fazia religiosamente.
Contrariando as previsões de uma cartomante fajuta de sua infância,viveu mais de quatro décadas.para sua surpresa,enviuvou aos setenta e pouco.A idade não lhe permitia trajar o tubinho básico que tanto alardeava uasr a cada vez que o marido passava mal ou era internado.Nem o chapéu de veuzinho,anos 40.Mas os óculos escuros da Maison Channel que ele mandara fazer para atender a um capricho da amada,ela os usou.Ela,poço de lágrimas,prestes a transbordar por qualquer coisa,pouco chorou.Como no dia de seu casamento,já derramara lágrimas grossas e antecipadas.Ele passaria a visitá-la em sonhos,ela o sabia.
Voluntariou-se para a Toca de Assis.Os sobrinhos visitavam-na,filhos,não os tivera,e sugeriam temporadas em suas casas.às vezes ela ia,para uma semana,no máximo.Era bem recebida,contava suas histórias verídicas que soavam a invencionices,divertia-se com as crianças,mas não queria ser excessiva.Preferia os seus retiros no interior de São Paulo,no mato,cercada de bichos e de ex-bichos-grilo.
Depois dos oitenta,começaram a achar que ela talvez precisasse de um neurologista.Alzheimer?Ela parecia tão ligada ao passado.Sua memória tão aguçada parecia dar sinais de cansaço,mas qual!O presente a entendiava.A qualidade das artes visuais,da música e da ficção decaíra em ritmo vertiginoso,a seu ver e preferia ficar com suas lembranças,seus fantasmas e seus gatos.Revia DVDs e ainda morria de rir com a cena final de Some Like it Hot e com as cenas pastelão de The Great Race.Os filmes-cabeça não a interessavam mais.Nada de Berlinalexanderplatz.Do presente,só lhe agradavam alguns blogs de jovens ousados como um dia ela quisera ser.Os jovens e sua ilusão de onipotência!Se quisesse,poderia ser como Chiquinha Gonzaga ou como Maude de Ensina-me a Viver (Harry and Maude)que ela assistira com a própria Mme. Morineau e Diogo Vilela.Mas não lhe agradava a idéia de novos amantes.errara muito,não aprendera nada - ou quase nada - mas sabia que o Eclesiastes estava certo."Há um tempo para todo e qualquer propósito debaixo do sol".Seu tempo não era aquele e ela estava longe de ser uma versão feminina de Vinícius de Moraes.
Certo dia,assim do nada,um de seus gatos apareceu ferido."É câncer" foi o diagnóstico fatal.Já perdera gatos por demais.Faltava-lhe coragem para mandar sacrificá-lo.Ele não agonizava.Assim como nunca tivera coragem de mandar castrar um só que fosse dos seus gatos,não queria apressar a morte.
Bem,nunca se sabe.Ela,que não perdia a dose de nenhum remédio,que não se esquecia de um só aniversário,fosse de vivo,fosse de morto,não fechara o gás certa noite de junho.E quando foi preparar seu chá matinal,nos milésimos de segundo que precederam a explosão,pensou:"Maria Braun!Merda!Não queria Fassbinder!Por que não Frank Capra ou Billy Wilder?"


Entre as frestas
(Luz... Porto)
Nunca conhecera o amor. Tivera, é claro, suas paixões, seus envolvimentos. Mas amor, amor, este nunca a havia tocado. Era passional, dramática, efusiva. Namorava bastante, saía, flertava. Cupido, moleque teimoso, beliscava seu coração. Ela intuía a existência do amor, mas não o sentia.
Até que certo junho veio, com ele o fim do outono e as festas de inverno. Uma brisa roçou-lhe meio de banda a alma desavisada e uma pena de sabiá marcou-lhe a varanda de ladrilhos brancos. De onde viera? Seria um sinal (Como era primitiva, tentando ler nos sinais de fumaça e nas nuvens desígnios dos deuses!)?
Ouviu a canção homônima na voz de Zé Renato e concluiu que definitivamente era um presságio. Tentou comprar o LP, mas estava fora de catálogo. Conseguiu uma gravação pirata e chorou com os versos "Tanta estrela lá no céu que até uma caiu na ponta do meu chapéu".
Viajou até Cabo Frio onde, numa feirinha do arrabaldezinho, encontrou, não balões, mas um brinco de penas azuis. Presságio confirmado. Algo estava prestes a acontecer. De posse do novo adorno, esperou. E os dias se passaram. E dormiu. E sonhou. E no seu sonho mais nítido sentiu a presença de um improvável colega que a olhava e dizia "Sabia que ia dar merda". Palavra tão feia, tão chula, num sonho tão onírico, tão cheio de pássaros e de varandas! O que teria aquela improbabilidade a ver com sua história pessoal?
Com esses fragmentos compôs um mosaico a lhe adornar as cortinas inexistentes da janela antiga que dava para a casa de seus sonhos, que dava para toda a solidão do mundo, qual a Paris descrita por Vinícius nos idos de 66. E o mosaico decompunha a luz do sol a penetrar pelas frestas. Desenhos mouriscos formavam-se no chão de tacos que não viam sinteco há uns quinze anos. Viajava pelas mil e uma noites através desses desenhos que à luz da lua manchavam-se de uma gota de sangue.
Como na canção de roda, o tempo correu a passar. Sua alma não era a mesma. Algo se partira dentro dela como grão de trigo que medra, como borboleta que irrompe do casulo.
Junho voltara e quando se deu conta estava com o rapaz do sonho em meio a uma confusão de transportes, de bilhetes não reservados, de música não ouvida. Programa alterado, jantaram e voltaram à casa cercada por bicos-de-papagaio e flores-de-maio.
A pena de sabiá doeu-lhe o peito. Ao olhar para ele, viu-se nua, de uma nudez quase indecente de tão despida, em meio à fartura de tecidos que a recobriam. Não sabia o que fazer. Aceitou-lhe o beijo. O mosaico mourisco que lhe adornava as janelas da alma partiu-se e ela foi tomada por uma timidez adolescente, uma castidade tão desconhecida que se sentiu no momento da criação, na Epifania dos primeiros versículos do Gênesis.
Não saberia dizer se ele a vira, se os olhos dele leram o que se passava nos dela. A dor era tanta que jurou a si mesma tecer com grossos fios nova cortina a encobrir-lhe o olhar. Não naquele instante. Mais tarde. Faltavam-lhe a roca para fiar, o tear para tecer. Um raio iluminou-lhe a alma e ela viu, como Sêmele vira a Zeus em todo o seu esplendor e grandeza. Não sucumbiu em meio às chamas, pois apenas O viu.
Pronto. Finalmente fora apresentada ao Amor. Antes que o ceticismo lhe tingisse os fios, que o auto-controle guiasse suas mãos no tear, que a razão orientasse a direção da trama, ela se abrira ao Amor. Nunca teria a coragem de compartilhar essa experiência, impossível descrevê-la. Antes que a vida lhe cobrisse novamente os olhos com a fina catarata do desencanto, vivera o amor. Jamais seria a mesma de novo, isso jamais se repetiria. Mas qualquer olhar que lhe fosse cúmplice naquela cidade de cem milhões de habitantes, veria por entre as frestas a alma jovem, porém antiga, desvirginada pelo Amor e, por isso mesmo, prenhe da mais absoluta castidade e falta de jeito juvenis.


PRISMA
(Luz... Porto)
O telefone tocara. Cercada pela névoa inconsciente que a embalava, não conseguira distinguir realidade de ficção. Em meio a seu sonho, atendera-o preguiçosa. Do outro lado da linha, silêncio. Mas havia alguém lá. Alô, alô, repetiu cada vez mais alto. Oi, disse-lhe a voz distante. Era ele! Reconhecera-lhe o timbre, o aveludado, a entonação. De um pulo ajeitou os cabelos, fez como se limpasse os olhos, ajeitou o pijama de cetim, afofou os travesseiros e, totalmente casual, respondeu Tudo bem?
Entabularam uma conversa comprida como se tivessem se visto há menos de uma semana. Troca banal de palavras entre amantes separados no tempo, na geografia e no registro civil. Falaram sobre as chuvas, sobre a primavera (ou seria outono?), sobre os amigos em comum, sobre os gatos, paixão antiga compartilhada em segredo.
Marcaram um encontro mais à tardinha. Um cinema, para variar. Um filme esquisito, desses que ela tanto apreciava. Comendo os Ricos. Atores desconhecidos, diretor desconhecido. Deveria ser bom.
Cumpriu seu ritual próprio para encontros especialíssimos. Shampoo alemão, escova de chocolate, depilação, manicure e, então, suas delícias mais pessoais: esfoliação, banho com sais e óleos aromáticos, máscara facial de argila, fubá para a retirada da mesma, leve hidratante para não deixar o rosto oleoso. Por fim, o rico perfume francês generosamente borrifado ao redor de todo o seu corpo. Lingerie nova e suave, meias finas, altos escarpins de verniz negro, vestido diáfano e decotado, xale para proteger-se do ar refrigerado. Bijouterias grandes e coloridas. maquiagem suave: um pouco de corretivo, leve pincelada de blush e o batom, sua marca inconfundível. Trancou o apartamento, chamou o elevador, tomou um táxi e despencou-se para o Estação.
Súbito, cruzava a baía ao lado de seus gatos e de seus mortos mais queridos. As poltronas da barca forraram-se de veludo escarlate e garçons solícitos serviam-lhes champanhe, com baixíssimo teor alcoólico. Os corrimões de madeira eram agora de bronze lustroso e tapetes amaciavam seus passos sobre o chão e as escadas de madeira velha. Um elefante nadava ao largo, enquanto garças enfeitavam o cair da tarde. Seu vestido ajustara-se-lhe ao corpo delgado e alongara-se em tafetá rubro e cintilante. Seus sapatos tornaram-se sandálias douadas e seu xale virou estola de pele falsa. Suas bijuterias, jóias resplandecendo em seu colo e lóbulos. Seus cabelos cresceram-lhes negros e abundantes como outrora, só que lisos. Seus olhos se abriram normais e ela enxergava o mundo como se espessa cortina tivesse sido arrancada de suas janelas.
Do fundo da barca, surgiu-lhe o Príncipe Encantado de sua imaginação pueril. Tomou-a nos braços e dançaram, não a Valsa do Imperador, mas belo e lânguido tango argentino, regado a bandoneons e iluminado por veras aromáticas. Beijaram-se ardentemente e foram se dirigindo à cabine principal onde fizeram amor em cama de dossel.
No melhor de tudo, um ruído. Insistente. Repetitivo. Como, pensava? Não havia telefones na barca! Mas não. Era o telefone. Acordou assustada e uma voz feminina e familiar lhe disse Oi!. Conformada, ela retrucou Tudo bem? Como vão as coisas? A outra, O que houve? Estou tentando te ligar há séculos! Você não atende mais o telefone? Desligou-se do mundo? Eu queria...