Friday, March 28, 2014

O SOM SEM A FÚRIA
(Luz... Porto)


    Crescera em uma família barulhenta. Cinco irmãos, Três meninas e dois meninos. Ele era o quarto filho. Quando nasceu, foi recebido por duas irmãs briguentas e faladeiras, de 6 e 4 anos. Já eram capazes de quebrar cristais, se ali houvesse, com seus gritinhos histéricos. O irmão, de um ano e meio era mais calmo, mas como pode um garoto de um ano ser realmente sossegado?
        Ele quase não chorava. Já havia ruídos demais pela casa. Crianças, gatos da vizinhança, cães da família, o rádio da avó... Ficava em seu berço, mudo, com os olhos abertos, aprendendo a captar o mundo através das imagens.
       Aos dois anos, ganhou mais uma irmã para engrossar o time dos que gritavam. Quando conseguia dormir, um deles começava a berrar e os outros juntavam-se ao coro infernal.
       Já menino grande, cm seus nove anos, permanecia cismarrento e sisudo. Os óculos acentuavam-lhe o aspecto sorumbático. "Força demais a vista com esses livros", reclamava a mãe. "Esse menino só pensa em ler". Mas enquanto mergulhava na leitura, exercitava mais e mais a sua capacidade de isolamento acústico. Conscientemente ou não, ele se concentrava na habilidade de separar os sons, de afastar os ruídos domésticos e de substituí-los, mentalmente, por algum trecho de música clássica, que tanto apreciava.
       Na juventude quase não ia a bailes, festas. Mas quando estas aconteciam em sua casa às vezes não conseguia escapar. Foi numa dessas noites que conheceu Tereza. Ela descobrira-o sentado a um banco, no fundo do jardim, com um exemplar de O Capital nas mãos. Achara-o atraente. Uma aura de intelectualidade o cercava, mas ela imaginava existir certa fragilidade e inexperiência nele.
       Os hormônios e a cobiça falaram mais alto. Talvez fosse a presa ideal, aquela por quem esperava desde que se certificara de seu poder de sedução. Como ele resistiria àquela morena de olhos verdes, 1,70 de pura volúpia? E que não merecia ser condenada à vida de subúrbio que ela levava. Se ela conseguisse fisgar Sebastião, sua vida progrediria. Ela via futuro no rapaz. Ele exalava ambição. Ambição intelectual, é claro, mas que, com uma mãozinha feminina, poderia se transformar em sucesso profissional. Uma brilhante carreira na universidade, bolsa no exterior.. Quem sabe?
       Aproximou-se do rapaz. Jogou todo o seu charme. Nada funcionou. Ele havia ligado dentro de si o tal radinho interior onde só tocavam Bach, Mozart, Wagner e Beethoven. Abordagem errada, Tereza. Não era assim que o envolveria. Passou a observá-lo. Descobriu que era colega de classe da irmã mais nova. Passou a frequentar a casa. Mudou de hábitos. Matriculou-se em um curso de alemão. E esperou...
       Sebastião foi o primeiro colocado no vestibular geral da universidade federal. Optou por Letras Clássicas e Vernáculas. O grego e o latim pareciam-lhe calmos e melodiosos (Abstraía, é claro, toda a dor, toda a guerra, todo o sangue da história desses idiomas). Recebeu convites para lecionar. Em pré-vestibulares. Declinou-os com elegância. Como toleraria mais de sessenta, oitenta alunos em uma só classe? Foi convidado para a sua primeira bolsa de iniciação científica. Pesquisa sobre o português arcaico. Dedicou-se a ela com brilhantismo.
        Tereza, que já havia se infiltrado em sua casa, volta à cena.  Resolve cursar Letras também. Desta vez aborda-o como uma aluna interessada, uma pupila dedicada. Dedicada, mas na medida certa. Deixa claro que não o idolatra. Perfumes fortes, decotes profundos e fendas foram deixados de lado. Conseguiu sua atenção. Começaram a namorar. Não houve grandes arroubos. Sebastião não gostava de excesso. A perspectiva de uma vida calma e sem sustos animava-o.
       Ele formou-se, ingressou no mestrado. Ela, na faculdade. Quando ele defendeu sua dissertação sobre a evolução das vogais do latim para o português, já estavam noivos. Ele, concursado e aprovado. Ela, certa de sua ascensão social, não se queixou quando Sebastião ganhou uma bolsa de estudos para o doutorado em Portugal e não pôde levá-la. O valor da bolsa seria insuficiente.
       Em terras lusitanas, conheceu uma brasileira. Uma conterrânea qualquer que o salvou de tediosas festas e de tediosos assédios por parte de colegas e alunas. Muito calorosa e comunicativa, ela o apresentou a alguns círculos de poesia e de música. Alternativos. Ficaram amigos. Ela o protegia em terras d'além-mar. E lhe dava tarefas inusitadas, como descascar cebolas, ralar cenouras e lavar a louça. Ele, sem perceber, entreabriu um pouco as janelas cerradas e gradeadas de sua alma. Aquela que, cético, ele jurava não possuir.
       Ela o invadiu com sua expansão pueril, seus decotes ousados, seu perfume doce, suas cores psicodélicas e com sua generosidade. Quando deu por si estava apaixonado. Ela não era contida, era uma efervescência de sentimentos, de casos amorosos. Viveram um tórrido romance. Tórrido? Bem, leve, divertido e feliz. Ela, sem dúvida o amava. Mas suas convicções não lhe permitiam admitir um amor que não fosse livre. Nunca fez cobranças.
       Ele veio ao Brasil e ela não se queixou. Em solo pátrio, Tereza fez um escândalo ao saber do ocorrido. Escândalo interno. Era preciso manter a calma para afastar a rival. Acenou-lhe com a concretização do sonho de ambos. O sonho dele de que ela se apoderara com outros propósitos. De modo inteligente e sutil, insuflou-lhe a dúvida: para que a paixão se já tinha um amor tão certo, estável e sem sobressaltos? A outra era por demais latina para assegurar-lhe uma vida a dois sem altos e baixos. Colocou-o contra a parede. Diplomaticamente. Aproveitou-se de um almoço na casa da irmã mais velha com dois filhos barulhentos e disse: ou ela ou eu.      
       Sebastião não hesitou. Após uma tórrida, essa, sim, tórrida, poi que até os mais fleumáticos têm direito a excessos ocasionais, contou à outra a verdade. Comunicou sua decisão. Tomada por uma inexplicável frio intenso, ela que até então cantarolava, quedou-se muda. Começou a tremer e chorou. Chorou muito. Dormiram abraçados. Na manhã seguinte, ela secou os olhos já esvaídos e disse adeus. Acatou a decisão. Amor, só com liberdade. Ainda que a ausência do amado lhe levasse metade da alma. A alma, que ela tinha e conhecia, era grande. Sobreviveria.
       Sebastião, já livre, assume nova cadeira na Universidade. Agora é Professor-Doutor de Literatura Portuguesa. Casa-se com Tereza. E começam uma vida de conferências, palestras, erudição. Tereza também faz seu mestrado e inicia sua carreira. No meio do caminho houve um filho. Nada planejado, mas bem assimilado. A mãe de Sebastião, já viúva, toma-se de amores pelo pimpolho. E cria-o com esmero. Anos mais tarde, uma filha. Outra para ser criada pela avó orgulhosa. Curiosamente as crianças eram quietas. Pouco atrapalhavam os estudos de Sebastião. Pouco ofuscavam seu brilho. Era como se habitassem alas diferentes de um castelo. Seus caminhos pouco se cruzavam.    
       Sebastião passa a ousar uns versos. Medidos, secos, exatos. Belos. Contidos. Publica alguns livros de sua autoria. Tereza acompanha o marido, mas tem sua vida independente. Algum amante ocasional. Sempre discreto. Quanto a Sebastião, às vezes cede aos encantos de uma ou outra mulher mais atraente. 
       Um dia falta-lhe a mãe. Que perturbação! Quem ficaria com as crianças, de nove e doze anos? A rotina da casa muda. Contratam uma governanta. Por mais germânica que Fräulein fosse, não era avó, nem mãe. Não conhecia, desde a gestação, as idiossincrasias de Sebastião. Os barulhos começam a surgir. Uma cadeira arrastada aqui, uma televisão mais alta ali, festinhas de criança...
       Sebastião começa a ficar irritado. Sua relação com Tereza estremece. Muito de leve. Mas estremece. Ela passa um ano no exterior terminando o doutorado com uma bolsa sanduíche. Leva os filhos e a governanta. Ele engaja-se em um projeto inadiável. Fica no Brasil. Procura se isolar. Passa aquele ano como um monge. Então é convidado para um pós-doutorado em Londres. Ela, que já tinha retornado, fica, em função de suas novas atribuições na universidade.
        Em Londres, Sebastião começa a apresentar problemas de audição. Diagnosticam um comprometimento do nervo auditivo que o levará, com o tempo, à surdez. Prescrevem-lhe um aparelho auditivo. Uma cirurgia seria arriscada. Sebastião volta de Londres com o sofisticado aparelho. Que passa a ser desligado com certa frequência. Para poder ouvir seu Bach e o seu Mozart em paz, confidencia aos amigos mais íntimos.
        Três anos depois a separação fez-se inevitável. Bens compartilhados, filhos encaminhados, cada um segue o seu rumo. Divórcio amigável, convivência profissional amigável. E o comprometimento do nervo insinuando-se, vagaroso.
       Sebastião abandona de vez a sala de aula. Passa a exercer atividades administrativas, além da pesquisa, é claro. Dá palestras e escreve ensaios e obras teóricas. Está feliz. Vive isolado em seu apartamento confortável e bem decorado. Não assiste a TV,  só a um ou outro filme. "A produção cinematográfica decaiu vertiginosamente", declara. Escreve seus poemas, ensaia alguns contos, ousa um romance. Recebe um prêmio. Pronto. Missão cumprida.
       Mas seu corpo parece não lhe obedecer. Começa a sonhar. Ou a se lembrar dos sonhos, coisa que nunca antes acontecera, jura. Não lhe bastam os braços de uma ou outra amante de tempos atrás. Fica nostálgico. Sente falta daquela latina colorida que conhecera em Portugal. Sonha que ela ainda o embala com canções praieiras, coisa que nunca revelara a ninguém. Que ele ainda dorme, com o membro adormecido, entre as pernas dela. Sente seu cheiro, seu calor. Mas já perderam o contato. Ela bem que lhe telefonara, enviara e-mails, mas ele a evitara. Agora sente falta daquela exuberância colorida que só experimentara ao lado dela. Por onde ela andaria?
       Por fim, chega-lhe a surdez. Definitiva. A princípio tem medo, fica apavorado. Aos poucos, percebe que era tudo com o que sonhara. Subitamente seus ouvidos se abrem e ele escuta a "Morte de Isolda", na transcrição para piano feita por Lizst. E os concertos de Brandenburgo. E Beethoven. Chopin. Ravel. Brahams. Já vive em paz. E todas as noites é embalado por aquela risada cristalina que ele abandonou em sua juventude e por aquela voz que lhe descortinara todo um lindo repertório da MPB. Estava por fim ao lado dela. Para sempre.