Tuesday, February 25, 2014

NOITE SEM LUAR
(Luz... Porto)


    Na milésima noite, Scheherazade estava cansada. Perguntava-se o porquê de ter de contar infinitas histórias a seu sultão sem ter direito a uma única noite de amor que fosse.(Tivesse-a, seria, sem dúvida, decepada como as outras).
      Não lhe parecia justo este destino de Ariadne ou de Moira. Tecer, tecer, tecer. Tecia dentro do próprio tecido e não podia embaralhar a teia nem misturar os fios.
         O tempo passava lento. Mudavam-se as histórias, mas cada noite era igual às outras. Odalisca, Scheherazade treinava coreografia diferente a cada por-do-sol enquanto urdia sua trama.
         De seu útero solitário, via-se forçada a tirar sua teia resistente às intempéries do marido voluntarioso, sempre ávido por mais relatos.
         Noctívaga, sentia falta do repouso noturno, do sonhar acordada que só a noite estrelada sabe trazer.
         Estava prestes a desistir de tudo. A romper o fio, a se deixar morrer. Que mais outras virgens perecessem. Azar! Já cumprira sua parte.
         Triste em seus trajes brilhantes, aguardou a chegada do esposo. Perante ele, deveria mostrar-se sempre solícita, sempre bela, sempre plácida.
         Os véus que nunca usava para a dança, deles se valia para encobrir sua profunda tristeza. À luz das lamparinas, seus olhos ricamente maquiados não pareciam refletir o que ia em seu íntimo. Para um observador mais atento, talvez, mas o cônjuge que lhe coubera era tão obsessivamente concentrado em sua honra, ferida há tantos anos -  quase ninguém mais se lembrava do incidente - que só via nela a ama de infância a embalar-lhe o sono com narrativas fantásticas e inéditas.
         Ele não a via como mulher, como mulher desejante e viva. Como parceira. O máximo que ela se tornaria seria mais uma, de seu harém vazio, em seu leito.
         Então Scheherazade decidiu-se. A morte lhe seria mais suave que aquele suplício de Tântalo, perfumado a raro almíscar, é claro.
         Naquela noite, antes do prólogo habitual, ela dançou. A dança dos sete véus. O sultão espantado com o que via - não queria consumir a união e perder a tecelã de histórias - excitou-se. Sentiu o membro a pulsar e a pulsação aumentou quando a viu manobrando a cimitarra. Aproximou-se dela, tomou-a nos braços. Estava prestes a penetrá-la quando viu um líquido doce a escorrer-lhe pelo ventre. Anestesiado com a beleza revelada da esposa, não viu a lâmina aproximar-se, nem sentiu o corte. Caiu sobre ela sem dizer uma palavra.
         A sedutora sultana afastou o corpo que lhe pesava. Banhou-se e vestiu velhos andrajos tomados à antiga ama.
E, protegida pelo véu da noite sem estrelas, caminhou resoluta, passo a passo, rumo a seu futuro.
            

Monday, February 24, 2014

OS TRÊS BEM AMARGOS
ULISSES
(Luz... Porto)

    Embora filho reconhecido de Laertes e Anticleia, Ulisses sempre sentiu a sombra de seu pai biológico, Sísifo, a rondar-lhe a alma.
     Nascera de uma noite de amor sem amor. Sua mãe fora violada em represália a uma tola disputa por rebanhos, para alegria de seu avô, Autólico, que tanto desejava um neto inteligente e astuto.
     E assim foi. O jovem esguio tornou-se discípulo de Quíron, o Centauro. Aprendeu várias artes, desenvolveu o espírito e sabia-se sucessor ao trono de Ítaca. Pretendia reinar com magnanimidade e sabedoria.
     Mas Quíron não o prevenira contra as armadilha do coração, víscera que ele, racionalmente, julgava tão importante quanto o fígado ou o pâncreas.
     Na hora de escolher uma rainha, dirigiu-se a Esparta em busca da mão da bela Helena. Sua beleza o encantou mas não o seduziu. Sentiu que a sorte não o favoreceria e acabou aconselhando Tíndaro, pai da bela e cobiçadíssima jovem, a exigir de todos os pretendentes um juramento. Os preteridos deveriam respeitar a escolha de Helena e ajudariam o eleito a manter seu casamento caso surgisse algum conflito belicoso que pusesse em risco o enlace.
     Deixando o palácio, uma jovem meio alourada cativou seu coração: Penélope, prima de Helena.
     Facilmente levou-a a Ítaca para fazer dela sua consorte no trono e no leito.
     O filho que tiveram, primeiro de muitos, supunha, revelou-lhe a verdadeira vocação: pai de família.
     Por esta vocação - e por sonhos que ele julgava ter à noite - ele se fingiu de louco e saiu a arar diuturnamente os prados de sua ilha, até que Palamedes, mais esperto, percebeu o estratagema e jogou Telêmaco, filho do rei, em frente ao arado. Ulisses viu-se obrigado a parar e a ceder.
     Não, ele não temia a guerra. Fora educado por Quíron para isso. Nem desejava trair o pacto que ele mesmo sugerira a Tíndaro. Ele apoiaria Menelau. Só não queria se afastar dos braços de Penélope nem afastar Telêmaco dos seus.
     Dez anos se passaram em luta sangrenta e feroz. Cansado, Ulisses não via a hora de dormir novamente ao lado de sua Penélope e de caminhar tranquilamente por sua Ítaca.
     Os deuses assim não quiseram. Esses deuses caprichosos, os mesmos que causaram, inadvertidamente a Guerra dos Dez Anos, não eram capazes de assumir a responsabilidade pela tragédia que desencadearam.
     Cabia aos mortais, aos pobres e desamparados mortais, iluminados pelo fogo de Prometeu, pagar pelo ocorrido. E os deuses souberam cobrar caro.
     A princípio nenhum dos guerreiros deveria voltar ao lar. Não de forma auspiciosa. Palas Atena, contudo, protetora do herói, arranjou uma forma de fazê-lo voltar. Com um preço, contudo: mais dez anos de provações longe do lar.
     E assim, ao sabor das marés e tempestades com que Poseidon lhe açoitava, sofreu nas mãos de Afrodite que o fez se apaixonar por algumas mulheres que cruzaram o seu périplo, muitas vezes mulheres que lhe salvaram a vida. A cada paixão, porém, o herói sentia algo a apertar-lhe, como se uma coleira o cingisse, fazendo-o pensar na esposa..
     Uma, porém, tocou-lhe a víscera adormecida: Circe, a feiticeira. Ele deveria odiá-la. Dizem por aí que ele a repudiava. Não era ela o tipo de mulher que ele escolheria para amar, em absoluto, mas foi com ela que passou mais tempo e foi com ela que viveu seus momentos de amor mais intensos.
     Agradavam-lhe as histórias da feiticeira, sua verve. Sentia-se lisonjeado pelo modo como ela lhe ouvia as aventuras, com a boca levemente entreaberta, o nariz um pouco franzido e os olhos escuros bem atentos.
     Ulisses, tão senhor de si, sentia-se desconcertado ao lado de Circe, que nunca interrompia seus momentos de solidão e que era capaz de ficar horas em silêncio ao lado do amante.
     Mas o pai de família falava mais alto e a cicatriz no joelho ardia, abria de novo e pulsava.
     Deveria voltar ao lar, ao seu lar.
     Circe não disse nada, não pediu nada. Empalideceu, encurvou-se, imperceptivelmente, sobre o ventre, como se tivesse sido apunhalada.
     E Ulisses voltou à sua Pátria.
     Não esperava que um dia a sua Penélope, a doce e inocente Penélope, viesse a se cansar dele.
     Quando a coleira foi aberta, ficou desnorteado, não sabia para onde ir.
     Ulisses, o "homem à procura de si mesmo", percebeu que gastara vinte anos da sua vida para voltar ao ponto de partida, sem nenhuma chance de recomeço.
     


Sunday, February 23, 2014

OS TRÊS BEM AMARGOS
PENÉLOPE

(Luz... Porto)

   Ulisses fora o primeiro homem de Penélope. O jovem sucessor ao Trono de Ítaca que viera a Esparta em busca da mão de sua prima, Helena, sabia que poucas seriam suas chances junto à cobiçada princesa.
    Penélope não se fez de rogada. Arranjou uma forma de se encontrarem casualmente nas escadarias do palácio e o amor (?) falou por si.
    Mudou-se com o filho de Sísifo para Ítaca e Ulisses assumiu o papel que ambos julgaram o mais apropriado: pai de família.
    Tudo ia bem até que Helena foi raptada por Páris, em consequência do terrível julgamento urdido pelas Erínias.
    "Falsa", pensava ela. "Helena deve estar bem à vontade em Troia. Agora todos os antigos pretendentes deverão ajudar Menelau a resgatar a esposa e a vingar sua honra."
    Então Penélope, com o coração endurecido, viu seu homem partir. Ela não podia imaginar que seria por tanto tempo...
    Enquanto seu homem guerreava, Penélope criou o filho e administrou o lar com mão de ferro.
    Com o passar dos anos, vários pretendentes se juntaram e começaram a exigir que a rainha escolhesse um substituto para o trono - e para o seu leito.
    Esta parte permaneceu obscura. Penélope fez com que corresse o boato posterior de que ela se propusera a bordar rica tapeçaria e que, ao concluí-la, escolheria o tal pretendente. Fez com que se acreditasse que ela bordava de dia e desfazia o bordado à noite. Aparentemente ela, tão recatada, preferia pintar e bordar nas sombras...
    Mas não, não queria outro homem. Não sabia ao certo se amava Ulisses, mas sabia que era certo amá-lo e que era necessário que ele acreditasse nesse amor. Seu filho precisava de um pai e ela, de um companheiro.
    Todos os estratagemas que ela, à noite, durante várias noites, insuflara no marido adormecido para que ele fugisse da guerra deram com os burros n'água.
    Os anos de batalha foram os mais fáceis. Apesar do perigo da morte, Penélope acreditava que o discípulo de Quíron haveria de sair vencedor, graças à astúcia herdada do pai biológico.
    Mas a volta para casa, ai, essa maldita volta para casa! Não estava em seus planos que fosse tão demorada.
    A cada nova aventura do marido sentia o peito apertar e o coração vir-lhe à boca. E foram muitas, bem, talvez não tantas assim, as mulheres com quem ele topou.
    A cada aperto no peito, ela puxava a coleira invisível com que atara seu Ulisses. Era uma forma segura de saber que ele não se esqueceria dela, que haveria sempre uma sombra entre o marido e a amante que dormisse com ele.
    Uma coisa a telúrica princesa não previu: que ela, ela, a dedicada, a amante, a fiel Penélope, haveria de se cansar do esposo e de suas infindáveis aventuras que ela sabia serem compartilhadas entre os homens nos banquetes regados a vinho.
    A Penélope não interessavam os feitos do marido, suas batalhas, muito menos seus silêncios e o hábito que adquirira (ou que sempre tivera?) de andar ensimesmado.
    Soltou a coleira, deixou que o cão partisse, mas ele, contudo, continuou a seus pés...