Saturday, August 16, 2014

ÍRIS NOBILE
(Luz... Porto)
À Katia




    "Mas como assim, Iris? US$ 400,00 por um perfume é uma loucura! um desperdício!", disse Priscila à colega um tanto hesitante. "Larga isso aí e vamos cuidar da vida."
     E Iris largou. Voltaram juntas do shopping. Era uma quinta-feira relativamente amena. Caminharam. Priscila ficou no segundo e Iris subiu mais um lance de escadas. Entrando no apartamento foi até a pequena área. Alimentou os passarinhos, contemplou o varal cheio de roupas e sossegou um pouco.
     A visão e o cheiro da roupa estendida remetiam-lhe à infância no interior do Brasil. Cidade pequena. Nem era cidade ainda. Um distrito Serviços precários. Escola só até o ginásio. As crianças aproveitavam as noites de lua cheia para brincarem de pique esconde. Mal tinham brinquedos. Os pais improvisavam tudo.
     Uma vez enroscou-se em um dos lençóis que a mãe caprichosamente lavara e ficou de castigo. Mesmo assim, a visão da roupa na corda secando ao sol era a certeza de que teriam o que comer. A mãe precisava das freguesas. Depois de seca, a roupa era bem passada, dobrada e entregue à sua dona. O sabão que a mãe usava para as 'clientes' não era o mesmo que usava em casa. Era melhor. Mais cheiroso. Parecia perfume.
     E a mãe, ai a mãe de Iris, Dona Rosa, como ela estaria de fato? Desde que se mudara para o Canadá com Priscila e Diego, colegas de faculdade, Iris não a vira mais. Comunicavam-se por cartas. Rápidos telefonemas nos aniversários e Natal. O ordenado da firma de informática que contratara os três amigos era bom, mas era preciso juntar. Mandar uma parte para a mãe cuidar da avó, velhinha, usar uma parte para sobreviver e economizar a terceira. Para adquirir, finalmente um imóvel para a família. No Brasil, de preferência.
     Mecanicamente, Iris foi beber água. Pegou um copo e, quando deu por si, lá se espatifava ele no chão. Tomada de um estranho torpor, Iris percebeu tudo em câmera lenta. A queda, o choque contra o piso, os estilhaços. Viu-se transportada à sua casa de infância em noite chuvosa. Ela tinha oito anos.  Como sempre, faltara luz por conta da chuva intensa. A mãe lavava a pouca louça que tinham e deixou cair um copo. Fora lá fora buscar pá e vassoura e gritara "Iris, Ricardo, não entrem na cozinha. Acabei de quebrar um copo". Mas Ricardo, irmão mais velho, de doze anos já se encontrava na cozinha e só se ouviu um grito lancinante de dor. ele tinha pisado em um caco.
     A mãe correu e Iris ficou bem quietinha, paralisada, na sala. Percebia que o irmão pulava de dor e reconheceu o cheiro de sangue. Como? Coisa de mulher, provavelmente. Mesmo não sendo mocinha ainda, a menina trazia a sabedoria ancestral das mulheres que menstruam, que dão à luz, que assistem partos, que cuidam da cria quando esta se machuca e que se desesperam e dão tudo de si quando seu homem é ferido de bala ou a faca. Iris como que via o sangue se espalhando pelo piso vagabundo de cerâmica branca com riscos pretos que o avô ganhara de uma obra em que trabalhara. Sobra.
     A mãe agiu depressa. Não tinha como buscar ajuda. Pegou uma vela e a acendeu. Firmou bem a vista e viu que uma lasca grande do copo se incrustara no calcanhar do filho. Sem hesitar, pegou um dos lençóis passados e rasgou-o em tiras. Desinfetou o facão de carne no fogo. Passou álcool. Rezou. Fez o filho beber um copo grande de cachaça e morder um pedaço do pano. Manobrando, com precisão cirúrgica, a faca enorme, conseguiu tirar o caco com o mínimo de dano. Lavou o ferimento, desinfetou-o e improvisou um curativo com outra tira do lençol sacrificado.
     Iris já não se lembrava mais do ocorrido. Ficara registrado em alguma gaveta esquecida na memória. E na carne do irmão, é claro... Não se lembrava ao certo do que ocorrera depois. Parece que a mãe levara o filho ao posto de saúde no dia seguinte e estava tudo bem. Deram antibiótico. Quanto ao lençol, certamente a mãe pagara por ele. Ou perdera a freguesa. Provavelmente  ambas as coisas ocorreram.
     Coincidência ou não, o fato é que, após o ocorrido, Dona Rosa voltou a estudar Com muito custo  descobriu um supletivo à noite. Ajudada pela professora de português que lhe reconhecera talento e inteligência, aliados à determinação, terminou o antigo ginásio e e fez o Ensino Médio, saindo deste Técnica em enfermagem.
     Trabalhou em hospitais, era querida pelos pacientes, respeitada pelos médicos. Muito séria, começou a cursar faculdade, mas viu-se obrigada a largar. A essa altura, a avó de Iris já se encontrava doente e não podia ajudar em nada. Ao contrário. Precisava de cuidados constantes em que se revezavam Dona Rosa, Iris e Ricardo.
     Despertando do torpor, Iris pôs-se a catar os cacos, varrê-los e a limpar o chão da cozinha, pensativa. Fora essa mãe guerreira quem lhe inculcara o espírito da luta diária pela sobrevivência digna. Que a forçava a estudar. Que a estimulou a fazer faculdade. Que, mesmo chorando, a vira embarcar com os colegas rumo a um futuro melhor em terra bem distante. Que batizara o irmão de "Ricardo" por ser 'nome de príncipe' e a ela de Iris por ser heroína em um romance de Agatha Christie. E por ser o nome de uma flor da realeza.
     No dia seguinte, ao sair do trabalho, voltou sozinha ao shopping da véspera. Foi à mesma perfumaria e fitou novamente o frasco de "IRIS NOBILE" da Acqua di Parma. Eau de parfum. 100ml. Provou-o de novo. Decidiu-se. Para espanto da vendedora, pagou em dinheiro, não em cartão. Duas notas de 100, duas de 50, cinco de 20. Ante o olhar aparvalhado da moça, Iris explicou:"Tem de ser em dinheiro para que eu sinta a compra de verdade. Afinal esta sou eu", disse, apontando para o frasco. Pegou o embrulho e saiu da loja pronta para um belo entardecer alaranjado.




Friday, August 15, 2014


O ANEL QUE TU ME DESTE


(Luz... Porto)

     Em criança saía à rua com meu pai. A memória me trai, mas sou capaz de jurar que ele comprara uma pulseira e um anel de ouro com meu nome gravado só para assinar a obra que produzira. Mãos pequenas, dedos estreitos, o espaço era pouco para os meus prenomes. Meu pai mandara então gravar a forma como ele me tratava: Luzia Teresa. Eu me sentia orgulhosa, aquele cotoquinho de gente junto a um pai que eu julgava enorme. De fato, meu pai tinha a constituição grande, embora não fosse tão alto assim.
     Um dia perguntaram se ele era meu avô e eu morri de vergonha. Não sei a razão. Nunca tive problemas com ou rejeição a velhos, agora chamados de idosos. Só sei que deixei de curtir sair com ele do jeito que eu curtia. Só sei que fiquei sem jeito.
     Os anos se passaram. Alguns. Já estava na escola e a professora perguntou a profissão do pai. Não sabia. Ele trabalhava na ATLANTIC. Muito. Levava serviço para casa. Fazia contas enormes. A mão. Viajava pelo Brasil. Sudeste e Nordeste. Ele respondeu "comerciário". Não fez sentido. Ele não vendia gasolina...
     Na mesma época, uma de minhas irmãs me revelou, para meu espanto, que meu pai não era formado. "Como não?" Minha mãe, dona de casa, era; minhas irmãs todas faziam faculdade. Meu pai cursara só o primário. Até a quarta série. E eu já estava quase lá! Não tive coragem de confirmar a história com ele. Poderia magoá-lo. Se ele só tivesse estudado esse tanto, saberia tão pouco, eu pensava.
     Uns anos depois veio a surpresa. Conversando com ele, coisa que fazia noite sim, noite não, o assunto mudou de 'como era a sua vida e como eram as coisas no nordeste' para a coleção de mitologia greco-romana que ele fizera para mim. Ele começou a falar de Ulisses. Conhecia a Odisseia. E a Ilíada. E os Trabalhos de Hércules. E conhecia tantas outras coisas ditas "eruditas". Conhecia a história da Atlântida. Sabia de algumas versões. Conhecia geografia. E histórias dos quatro cantos do mundo. E falou de política. Dos presidentes do Brasil. Da dívida externa. Dos perigos de uma ditadura. Do seu horror ao fascismo e ao comunismo. Do seu repúdio ao "Golpe Militar." Fui dormir aturdida. "Enganaram-me", pensei. "Meu pai é um homem culto."
     Vim a entender que no início do século XX, estudo era sim "coisa de rico". Sobretudo para quem morava no interior. E no interior do Nordeste. Dos vários filhos que meu avô paterno teve, só um ele mandou para estudar na capital. Ginásio, secundário, faculdade. A meu pai coube a labuta. Ajudar meu avô no trabalho com a fazenda (fazenda. Não latifúndio). Ser seu braço direito. Acordar às três, três e meia e dar duro até o sol se por. Até, por motivos nunca revelados, que apenas intuo, largar tudo e vir para o "sul", o Rio de Janeiro. Cidade onde foi porteiro de cinema, até ser promovido a gerente; frentista da ATLANTIC, até começar a fazer serviço "de escritório". Trabalhou com várias coisas, chegando à contabilidade e, pasmem, à auditoria. Por isso tantas viagens.
     As coleções, as enciclopédias, os dicionários, que enchiam as estantes lá de casa começaram a fazer sentido. Meu pai foi um autodidata. Muita coisa aprendeu na escola, aquela escola em que havia um único professor para todas as classes, todas as séries. Esse mestre-escola, respeitado que era, transmitia o que podia e o que não podia àquelas crianças. Muitas ficavam só com aquilo. Outras não. Buscavam conhecimento com o que lhes caía à mão.
     As coleções que povoavam as estantes da minha casa eram as mesmas que os outros tios tinham. As mesmas que vi na casa dos avós paternos quando por lá estive. Tesouro da Juventude, Enciclopédia Jackson, Manual de Contabilidade, Lello Universal, Guia Médico da Família e a Barsa. Essa, aquisição bem mais recente.
     O anel e a pulseira com meu nome não cabem mais em mim há tempos. A pulseira se perdeu. Acho que arrebentou. O anel diminuto, trago-o comigo até hoje. Se nele estão incrustados dois de meus prenomes, no verso pode-se ler PAULO B. PORTO. E é com orgulho, gratidão e carinho que ainda o chamo como sempre chamei: "meu pai"...


FADO


(Luz... Porto)

     "Vivia a te buscar porque/ Pensando em ti/Corria contra o tempo..." Ao som desses versos, que só seriam compostos três ou quatro anos depois, ela adormecia. Não era triste nem alegre. Tampouco era poeta, embora a poesia a habitasse. Era só mais uma na multidão.
Esperava por um príncipe? Não. Já tivera o seu, pensava, com a arrogância dos vinte, vinte e poucos anos. Um príncipe que não servira para muita coisa. E, às vezes, buscava por algum, de tez morena, nariz bem feito e inteligente, em meio à multidão de colegas de faculdade, em meio àqueles que, todos os dias, ou quase, atravessavam a baía de barca.
     Um dia, sentada no ônibus, prestes a partir, ela o viu. Olhou para ele e sabia que o conhecia de longa data. Até o nome pronunciou. Aí, as versões variam. Aparentemente ela se apresentou e fizeram o percurso conversando. Se era doida? Tudo indica que sim. Soubera de um rapaz encantador e não tão tímido assim. Segundo a irmã, haveriam de se dar bem. Eram parecidos. Por isso não lhe pareceu insensato ou descabido conversar com ele.
     A vida seguiu, como sempre segue. Envolveu-se com outros rapazes. Teve outros projetos de trabalho. Foi servidora pública. Mudança dramática. Para espanto de todos, largou tudo. Dedicou-se a uma carreira solo que ia bem. Investia em livros, leitura, cinema, teatro e shows. Cultura. Voltando, carregada com o Ramo de Ouro e a História das Religiões, esbarram-se novamente. Decidem fazer um lanche. Vão a uma saladeria. Conversam mais. Ele fala da mãe, essa figura etérea, mas de pulso. Ele a convida para uma peça. Ela hesita. Acaba indo com uma amiga.
     Muitas luas novas se passam. Ela não pensa nele. Ele não pensa nela. Abandonando um pouco o voo solo, ela se emprega em uma grande firma. Retoma os estudos. Conhece gente nova. Ela sempre conhecia gente nova. Tinha muitos amigos.
     Visitada por um enorme pássaro, ao som da Ópera Carmen, ela se vê duplicada em um castelo com uma enorme escadaria. Trajava uma ousava camisola e um negligé pretos. A outra também. Há um embate, as duas lutam e uma se espatifa no hall de mármore. Acorda assustada com o sonho, que mal compreende. Nem sabe qual das duas sobrevivera. Ela ou seu doppleganger.
     À noite, para desanuviar, decide convidar um dos amigos para jantar em sua casa. "Tadinho! Come sempre no bandejão", dizia-lhe o molengo coração. O amigo não estava. Voltando para casa, revê o Quase Esquecido, o Pouco Lembrado. Está mais bonito. Corado, com uma camisa de um azul vivo. Engatam em uma conversa sem fim sobre poesia. E os poetas preferidos. Dos dois. Entre ir a um bar temático em Ipanema ou a uma peça em um teatro da cidade, optou-se por esta última.
     Despediram-se amigavelmente. Então ela, leitora assídua de Malba Tahan, se deu conta de que, para os árabes islâmicos, quando uma pessoa, assim do nada, cruza o nosso caminho três vezes, isso é um sinal de Alah. Sinal de que esta pessoa fará parte da nossa vida. Para o bem ou para o mal. Sinal de que estes caminhos estão entrelaçados.
     No domingo, toma um banho pensativa. Arruma-se, maquia-se e se penteia como uma Vestal encaminhando-se ao Templo. Não sabia o que esperava por ela. Mas segue resoluta, cabeça erguida. Há que se cumprir o destino. Seja à custa de sangue e lágrimas, seja à custa de risos e levezas. Ou de trabalho duro. Não importa. Ela apenas fecha a porta atrás de si, entra no carro com seu mais belo sorriso. E vai...