Saturday, May 31, 2014


"Glória a Deus nas alturas e paz 

na terra aos homens de boa vontade".

(Luz... Porto)




     Foi assim que aprendi o Glória-ao-Pai. Achava bonito, mas estranho. Por que paz na terra aos homens de  boa vontade? Era muito criancinha ainda para perceber que a boa vontade era uma virtude. E uma virtude que vem se tornando mais rara...
     Se fosse vivo, Paulo Barbosa Porto, meu pai, estaria completando hoje 99 anos. Na minha cabeça de criança, ele chegaria fácil aos 100. Um pai forte, de boa saúde. Nem uma gripezinha ele tinha. Às vezes, um febrão, reflexo da malária contraída na juventude. Mas ele se enfiava debaixo de vários cobertores, tremia muito, suava muito, e eu, na ingenuidade dos meus cinco, seis anos, ficava sentada no chão, no escuro, lendo Luluzinha pra ele melhorar.
E ele acabava melhorando. Ele, o pai incansável, o marido dedicado, o vizinho prestativo, o genro de ouro, o "sobrinho" que minhas tias-avós admiravam, o irmão com quem se podia contar, o filho "queridinho" da minha avó (há controvérsias. Mas suspeito que fosse). Ele era a boa vontade em pessoa. 
     Não digo isto por ser filha dele, não. Ele era conhecido no comércio, nas redondezas. Tinha o hábito, que eu mantenho, de ter fidelidade aos comerciantes. Comprava na mesma farmácia, na mesma mercearia, no mesmo jornaleiro, no mesmo açougue. Havia açougues naquele tempo! E tinha 'conta' nos lugares mais próximos de casa para necessidades. E como elas surgiam! Era muito boa a sensação de se ir à farmácia e ser reconhecida como "filha do Seu Paulo, do 15". O crédito se abria para mim.
    Honesto, honestíssimo, chato de tão honesto. Era um homem de palavra. De poucas palavras, mas a caçula as arrancava a fórceps ou talvez por uma sede de passado que ele podia saciar. Após o jantar, o jornal, ia ele para o quarto, descansar ouvindo rádio. E eu atrás. Aí ele me contava muitas histórias. Como era a casa em que ele nasceu, como era ter tido vinte e um irmãos, ainda que só dez tenham sobrevivido. O que comiam, como se fazia com a carne, como era viver sem geladeira. Havia papel higiênico? E pera, no Nordeste tinha pera?
     Assim eu ia criando a casa que, vinte e oito anos depois eu viria a visitar. Imaginando meus avós paternos que não conheci. Cavando um São Francisco que irrompia pelo chão seco. Desenhando o mestre-escola que dava aulas a crianças de várias séries numa mesma sala de aula. E que usava a palmatória... Caminhando pelas ruas sem asfalto por onde passavam carroças e muita gente a cavalo, inclusive meu pai.
     Confesso que tinha medo de ficar órfã. Havia uma música infame que meu pai ouvia no rádio. Teixeirinha, talvez? O cantor falava de um dos pais que se fora. Eu não queria ficar órfã de jeito nenhum. E, confesso, tinha muita dificuldade em imaginar a vida sem meu pai. Não fazia, para mim, o menor sentido.
     Quando ele teve câncer de próstata, não me contaram. Nem a mim, nem a ele. Ele não teria suportado saber da doença, eu suponho. Eu também não. Perguntava muitas vezes e minha mãe, minhas irmãs, meu tio, me garantiam que não era câncer. Como ele sofreu. O tumor impedia a passagem da urina. Ele ficava alucinado de dor. 
     Internou-se várias vezes. No final, já em enfermaria. Eu odiava a enfermaria. Não podia ficar com ele o tempo que eu quisesse. Em uma, meu pai presenciou a morte de um velhinho e ficou muito abalado. Transferido, foi para uma outra cuja janela dava para a rua. Era ótimo. Ele ficava em pé, me esperando, umas quinze pras sete, hora em que eu ia para o ponto esperar o ônibus. A gente ficava acenando uns cinco minutos, eu com o coração apertado.
     Teve alta. Passei a frequentar vários grupos de oração, nem todos católicos. Pedia para todos rezarem por ele. Minha mãe também. Havia grupos que rezavam em uma mesma hora. E eu, sozinha no meu quarto, rezando, pedindo a Deus que devolvesse o meu pai que ainda não tinha ido. E ele não foi. O tumor desapareceu, sabe-se lá como. E meu pai foi prorrogado em vinte e dois anos.
     Não sei exatamente o que ele via em mim. Afinal, eu não era tão parecida com ele assim, mas, certamente, havia uma afinidade de almas. Nós nos dávamos muito bem, especialmente quando não estava a família inteira com seu burburinho à nossa volta. Quase morri de culpa quando, aos quinze anos, demorei-me na rua para assistir a um desfile de modas em uma das galerias de Icaraí. Cheguei em casa um pouco depois das dez e meu pai estava desesperado. Até meu tio José ele havia convocado. A partir daí criei e cultivei o hábito de ligar sempre para ele (não havia celular) e avisar sobre mudanças de planos. A cada viagem que eu fazia, ligava uma vez por dia para dar notícias. E matar a saudade.
     Acusavam-me de ser "mimada", "estragada" por ele. Não sei. Sei que ele cuidou de mim. Como uma mãe cuidaria. Minha mãe não estava bem de saúde na minha infância e ele fazia '"coisas de mãe". Sempre fui muito sensível e era dada a vômitos e intoxicações. A mão que segurava a minha testa ao vomitar era a dele. Ele preparava remédios para mim. Quando precisava tomar antibiótico, ele preparava o Nescau e, na hora certa, me acordava. Bebia o leite, tomava o remédio e voltava a dormir. Era ele quem me acordava para a escola. Eu odeio ser acordada até hoje. Mas com ele era bem melhor. Até burra velha, já noiva, estando dormindo fora de casa, ele pegava o telefone e me acordava. Podia outra pessoa atender. Eu só acordava quando ele dizia: "Luzia (ou minha filha), são sete (sete e meia, seis, oito) horas. Você não pediu para eu te acordar?"
     Mas esse pai que me chamava de Luzia Teresa ou de Luzia Tê, e um dos poucos a quem eu concedia a intimidade de me chamar de Lu, me educou em muitos sentidos. Ensinou-me a generosidade, a responsabilidade, o amor pelo trabalho. E a tal da 'boa vontade'. Não sei se fui boa aluna. Mas tive o melhor mestre que alguém poderia ter.