Thursday, August 28, 2014

NEVERLAND
(Luz... Porto)
Para Gilberto

As fadas não são uma fantasia, mas sim
uma conexão com a realidade. Brian Froud



     Peter era um menino solitário. Não tinha irmãos. Tinha uma babá, como convém aos meninos da sua classe social. Um dia essa babá se distraiu. Ficou flertando com um rapaz e ele, aos quatro anos, se perdeu. Menino dotado de imaginação fabulosa, Peter foi parar em outra dimensão. Gostou tanto dela que não quis sair mais. Foi logo apadrinhado por uma fada, Sininho, que o adorava. Gostava tanto dele que mudou a cor de sua indumentária para verde a fim de combinar com a roupa do amigo. Eram imbatíveis. Inseparáveis.
     Com o intuito de aprimorar o refúgio, Sininho trouxe sereias, uma tribo de índios pele-vermelha. Todos ajudaram a criar o menino. As sereias ensinavam-lhe os segredos do mar, dos rios, dos peixes. Peter nadava veloz. Contudo, ele ainda se sentia só. Sininho teve uma ideia. Passou a recolher das ruas os meninos perdidos pela irresponsabilidade dos adultos e a levá-los para a dimensão em que Peter se encontrava. 
     Eles foram crescendo e, aos doze anos, Peter resolve batizar a dimensão de Terra do Nunca. Nunca adulto. Nunca velho. Nunca morte. Nunca doença. Nunca neve. Nunca tédio. E o Tempo foi banido do lugar. Como sem adversários, não há conflito e sem conflito o enfado se instala, Sininho aparece com um navio pirata. O navio era comandado pelo terrível Capitão Gancho, alcunha que recebera ao ter uma das mãos devoradas por um crocodilo em uma batalha contra Peter. Com medo do crocodilo, Gancho o fez engolir um despertador, coisa inútil nesta terra sem tempo, mas que produzia um alto tic-tac, sinal de que o animal estava por perto.
     Peter adotou o sobrenome Pan, em homenagem ao deus grego. Ele era o rei da floresta. Em suma, viviam em um paraíso. Mas nem o amor ardoroso de uma fada pode impedir a memória e a mente do menino de agirem por conta própria. Peter começou a ter pesadelos, a sonhar com os pais. Não lembrava bem deles. Não lembrava de Londres. Já fazia tanto tempo... Os sonhos não eram claros e Peter acordava ansioso.
     Então aconteceu. O descontrole de Peter fez com que sua sombra adquirisse vida própria. Sua sombra se soltara dele. Era um problema. Peter ia para um lado, a sombra ia para o outro. Peter queria se esconder de Gancho, lá aparecia a sombra. Sininho fez de tudo. As sereias ajudaram. Os xamãs foram consultados. Ervas exóticas experimentadas. Nada. Sininho dirigiu-se então ao CRM, Conselho Regulador da Magia. Eles falaram em Merlin. Seria uma solução. Mas a transição entre tantos portais seria tão custosa que poria em risco a vida do amigo. Bem, se Peter vinha sonhando com Londres e os pais, quem sabe a solução não estaria lá...
     Voltaram à Metrópole. Estava modificada. Com muito custo, localizaram a velha casa da infância do menino. Mas... Surpresa! A família de Peter não morava mais lá. A casa tinha outros habitantes. Era noite. Não havia adultos, porém. Só os filhos e uma cadela São Bernardo a guardar a casa. Peter e Sininho examinavam a residência quando a sombra se soltou de vez e entrou pela Bay Window adentro. Peter e Sininho foram obrigados a segui-la, ingressando de supetão no quarto, para espanto das três crianças, já assustadas com a sombra. Os meninos tentavam caçar a sombra e a menina, mais velha, tentava contê-los.
     Apresentações feitas, Peter descobriu que Wendy, a irmã mais velha, era responsável por seus irmãos, João e Miguel, junto a Naná, a cadela-babá.As crianças demonstraram enorme curiosidade em relação ao fato de Peter Pan voar. Ele explicou que era um dom de sua fada-madrinha. O pó de Pirlimpimpim. Um pó que a fada produzia no interior de seu corpo.
     Muito prática, Wendy propôs uma solução inédita. Costurar a sombra. Uma vez capturada a fugitiva, João e Miguel seguraram-na com força para que a irmã pudesse cosê-la. Coisa que fez com capricho e esmero. Até arremate a menina fez.
     Excitadíssimos, os  meninos queriam detalhes sobre a Terra do Nunca. Queriam visitá-la. Peter aceitou levá-los como forma de agradecimento. Wendy, mocinha obediente, não queria ir, mas acabou cedendo. Banhados no Pirlimpimpim, voaram rumo ao desconhecido.
     Chegando lá, maravilharam-se com tudo. A beleza da floresta, os rios, o mar. A temperatura amena e agradável, bem diferente do fog londrino Fizeram amizade com as sereias que lhes cantavam lindas berceuses e lhes mostraram as pedras dos rios. Cada uma com seu encanto. Conheceram outras fadas. Brincaram com os 'meninos perdidos'. Foram apresentados aos índios. Eles ensinaram as crianças a caçar e a pescar, advertindo-as para que sempre devolvessem os animais ao seu ambiente. Falaram dos pássaros. Wendy, João e Miguel aprenderam o canto de cada um deles.
     E Wendy? Bem, Wendy era menina. A única menina, além das indiazinhas que não moravam tão perto assim. E, embora mais nova que Peter, era mais velha que os irmãos e os 'meninos perdidos'. Wendy ficou sendo uma mistura de dona de casa e de mãe para todos eles. E botar ordem e manter a organização em uma casa dentro de uma enorme raiz de carvalho era uma tarefa ingrata.
      Por mais maternal que fosse, não era isso o que a jovem esperava da vida. Pretendia se casar, claro. Ter uma família, os próprios filhos. Mas quando fosse mais velha e tivesse um marido. Peter não era marido. Nunca seria. Aquela era a Terra do Nunca. Nada mudaria....
     Uma noite, após ter Wendy contado histórias para todos dormirem,Miguel, o caçula, começou a chorar. De saudades. Saudade da mãe, do pai, da Naná. Da casa, do parquinho, dos amigos. João não queria se emocionar. Achava-se um rapaz sério, mas chorou também.E os 'meninos perdidos' não entenderam nada. Sininho explicou a Peter que eles não tinham lembranças pois atravessaram o portal muito novinhos. E, como trocaram de dimensão sem o saber, sem o querer, conduzidos pelo Pirlimpimpim, a memória lhes fora apagada.
     O choro durou alguns dias. Peter não queria, mas Wendy era determinada. Urgia que regressassem a Londres. Foi um Peter contrariado que conduziu os filhos de Mr e Mrs Darling para casa, cortando o céu de uma noite estrelada. Despediram-se. Peter deu a Wendy uma pérola, uma das mais perfeitas que ele encontrara. Sem ter com o quê presentear o amigo, Wendy lembrou-se de que ele tinha apreciado um botão de pérola que estava em sua caixinha de costura.
     Um Peter mais amadurecido e tristonho voltou à Terra do Nunca. Pensou em devolver os 'meninos perdidos' às suas famílias. Tentou. Para seu espanto, descobriu que os pais não davam por falta deles e que novos rebentos haviam sido encomendados. Sininho fez de tudo para alegrar o amigo. Não obteve sucesso. Até o Capitão Gancho tentou animá-lo armando novas emboscadas às quais Peter não reagiu.
     Os pesadelos, as inquietações noturnas voltaram. A sombra, bem costurada, não se soltava, embora tremesse. Peter definhava. Uma noite, Peter adormeceu olhando as estrelas com o botão de pérola entre os dedos. Nessa noite, ele atravessou um Portal e, para sua surpresa, se encontrou com Wendy, que o esperava do outro lado. Eles se abraçaram e ficaram deitados de mãos dadas na relva, à beira de uma lagoa, fitando a lua e as estrelas. Peter amanheceu renovado e sereno.
     O tempo, que não corria na Terra do Nunca, passava para Wendy que tornou-se mulher, casou-se, teve filhos e netos. Mas todas as noites, todas, sem exceção, eles cruzavam o Portal e eram novamente o menino de verde e a menina de azul. Livres, felizes, de mãos dadas a contemplar a imensidão do céu sem fim.

Wednesday, August 27, 2014

TEMPO DA DELICADEZA
(Luz... Porto)


     Chegara em casa cansada. Como sempre. Um serviço entediante e cansativo. Mais cansaço agora com a venda da casa da mãe. Era iminente que ela retirasse de lá o que ainda lhe pertencia. Doar, jogar fora, ver o que podia reaproveitar. Fazer, enfim, uma triagem. Coisa que deveria também fazer em sua vida. Os livros, discos, que ficaram por lá já tinham sido devidamente encaixotados. Um resto de roupa e sapatos também fora doado. Olhou, com pena e saudade, para os móveis que seu pai mandara fazer para o quarto. Foram necessários mais de vinte anos para que o pai pudesse montar o quarto dela. Não poderia aproveitar nada. Cupim. 
      Contempla a estante com carinho e se dá conta de que não havia resolvido o que faria do seu som SONY. O primeiro que ela comprara com seu dinheiro. Um espetáculo na época. CD player, duplo deck, rádio AM/FM e controle remoto. Mas ele quebrara. O tempo não perdoa. As coisas e as pessoas se gastam. Ofereceu-o às empregadas. Nenhuma o quis. Ofereceu-o às acompanhantes. Recusaram. Tinham coisa melhor em casa. Mas a faxineira, antes que ela oferecesse, prontificou-se:" Lá perto de casa tem um rapaz que conserta. Quer que eu veja o preço?" E a faxineira o levou
     Na semana seguinte volta a faxineira falante, agradecendo o presente. Tocava que era uma beleza. E completa;"Olha o moço mandou devolver essas fitas. Ele disse que você tem bom gosto." "Fitas? Que fitas?" Percebeu então que tinha deixado dois cassetes no aparelho. Há tanto tempo que nem se lembrava mais delas. O rótulo , apagado, não lhe permitia ter pistas. Como, apesar do progresso, dos Cds, dos MP3s, era conservadora, tinha vitrola e toca-fitas em casa. Pegou uma delas ao acaso e apertou o play.
     Uma Verônica Sabino cantando:"Prometo te querer até o amor cair doente, doente... Depois de te perder te encontro com certeza, talvez no tempo da delicadeza..." surpreendeu-a. "Não lembro de ter ouvido a Verônica cantando essa música. Estranho..."  Depois veio um Chico em uma gravação antiga de Morena dos Olhos d'Água. Foi a gota que faltava. Lembrou-se do dia em que recebera a fita junto a um projeto que ela adoraria ter produzido. Projeto com dedicatória. Coisa de um ex-namorado, cineasta. Coisa de décadas atrás. Ela se lembrou de ter perguntado a ele a razão do Morena dos Olhos d'Água. Ela não os tinha verdes ou azuis. Ele rira e respondera.:"Como você não sabe? São olhos d'água porque ela está chorando". E tudo fez sentido.
      Sentido provisório. Só a música fez sentido. A tão sonhada volta subentendida pela fita e pelo projeto não deu em nada. Alguns momentos agradáveis, é claro. Uma promessa de felicidade. Ela o amava. Mas talvez a carreira dele, as companhias que ele tanto prezava... Pessoas famosas, conhecidas... Talvez ele a preterisse em função destas. Lembrou-se de inúmeros desencontros, de compromissos cancelados na última hora, de bolos. Não havia celular na época. Uma vez ele ligou de um bar- ela pode ouvir as pessoas falando - para pedir-lhe uma informação. E ela, em casa, esperando por ele para irem a um show. Ingressos já comprados. Foi sozinha.
       Embora atuasse no ramo artístico, era produtora, não era exatamente produtora de filmes. Nem tinha esse cacife todo. Talvez o fato de não ser notória o tivesse levado a preferir outras opiniões, outros conselhos. E de bolo em bolo, de saídas canceladas em cima de saídas canceladas, ela sentiu-se sobrando na vida dele. E sobrava. Preferiu ficar só. Tá, não ficou só por tanto tempo, mas não era a mesma coisa. Soube que ele tinha viajado, sido premiado no exterior. Depois, falta total de notícias.
      Agora quando ela se sentia tão cansada, olhava para trás e via sonhos não concretizados. Ficara no meio do caminho. A recessão, o Plano Collor, tudo isso quebrou várias pequenas empresas. Ela não conseguiu se manter e fechou a firma. Teve de se submeter a um concurso público. Trabalho burocrático que a entediava profundamente, tirando-lhe a alegria de criar. Tornara-se uma 'batedora de pregos', como seu namorado de infância costumava designar tais funções. Contava os dias para a aposentadoria, como um preso marca na parde da cela os dias de pena cumprida.
      E o tempo da delicadeza? Promessa vã de primavera. Flor prestes a desabrochar que um passarinho desavisado vem e bica. Não vingou. Só lhe restara, afinal, o tempo da aspereza...