Sunday, October 02, 2016


SÚPLICA

(Luz... Porto)


Tudo na vida tem um ritmo. O vento nos milharais. O vento no matagal. O ritmo das chuvas. O mar... Esse mar com quem fiz as pazes tão tarde... Comunhão que levou mais de meio século para ser firmada. Só eu e ele.  As ondas do mar. Insondável mar. Ora sereno, ora bravio. Não, não acredito em orixás. Macumba é coisa contra a Igreja. Minha filha não gosta da minha atitude. Diz que é preconceito. Diz para eu não mexer nas flores nem nas ofertas. Macumba! Crendice popular! Ela me acharia filha de Yemanjá. Não tocamos no assunto. Ela tem umas ideias estranhas agora.
Chega perto de mim e sorri. Sei que ela chora muito. Foi assim desde pequena. Uma manteiga derretida. Ela me contempla com serenidade. Reza, diz que me ama, pede a bênção. Ela sabe que eu estou sofrendo. Alisa meus cabelos e me beija. Não sei o que ela vê. Sei que vê algo mais. Ela quer ficar quieta a meu lado. Sinto isso. Lembro-me dela criança. Bem criança. Agarrada a mim. Se deixassem, ela passaria horas no CTI só segurando a minha mão. Sei que é difícil pra ela me ver assim.
Queria alguma coisa que trouxesse meu ritmo de volta. Um metrônomo, talvez. Quem sabe o ar não fluiria na inspiração e na expiração sem obstáculo? Quem sabe o coração não bateria ao som das baladas da Catedral, das Ave-Marias, bombeando sangue novo, limpo e fresco? Quem sabe... Quem sabe a música não me voltaria, os movimentos das mãos deslizando pelo teclado, os pés nos pedais?
Nada... Minha filha acredita que estamos no Purgatório. Deve ser coisa de espírita. Ela anda metida em umas coisas, eu acho. Batizei -a com onze dias de nascida para isso... Isso não pode ser o Purgatório, mas o CTI é. Tempo sem tempo. Tortura chinesa. Luz, barulho. Máquinas apitando. Um trem que nunca parte. Não sabemos se é dia, se é noite. As horas parecem eternas. É uma prisão dolorosa. As enfermeiras falam alto, há barulho, gente gemendo, gritando.
Uma das médicas me deu um outro remédio para dormir. Estou cansada. Quero dormir. Depois de anos com meu antidepressivo e meu ansiolítico essa cretina se mete a besta e troca. Bastou. A confusão mental piorou. Apitos. Músicas dissonantes. Frequências estranhas. Parece que vou enlouquecer. Não ligam. Penso na minha mãe e na minha filha mais nova. Mamãe ficou surda ainda moça e reclamava de ouvir barulhos. Chegamos a comprar um aparelho de surdez que ela nunca usou. Minha filha teve várias otites e um tímpano perfurado. Lembro dela sem dormir, desesperada, chorando, com os barulhos na cabeça. Melhorou com a homeopatia, mas até hoje tem problemas com certos sons. Talvez eu não tenha dado a atenção que as duas mereciam. Elas pareciam se entender. Tanto que Mamãe, que não admitia nada fora da rotina, aceitou que essa neta dormisse na casa dela em Friburgo. Menos mofo. Menos alergia. Menos problema de ouvido. Acho que elas se entendiam a seu modo.
Cochilo e acordo sobressaltada. Morri? Quando vão me tirar daqui? Estou toda roxa. Não há  veia mais para pegar. O ar é muito frio. Não me cobrem direito. Eu estou sem roupa embaixo das cobertas. Um ultraje! Morro de vergonha, mas não tenho forças. Alguma coisa ainda me prende. Será Henriette? Será o medo da morte? Já pedi para mamãe me levar. Mandam me calar. Não são eles que sentem a dor, a confusão, o isolamento. Não acredito que volte para o quarto nem que saia daqui. Minha filha disse que me emprestou o anjo de guarda dela... Que tolice. Mas achei bonito. Ela vem arrumada. Não quer que eu pense que ela não está bem. Sei que não está. O pai ela visitava todos os dias. Visitar a mim é mais difícil. Os tempos são outros... Envelhecemos todos.
Ai, minha Santa Cecília! Não costumo invocá-la. Não poderias me clarear um pouco a cabeça e preencher essa noite sem fim por que venho passando com os clássicos? Chopin, Debussy, Lizst? Santa Teresinha de Lisieux, eu te homenageio desde o meu nome até o nome de cada filha e da sobrinha, tu que desejas passar o teu céu fazendo o Bem sobre a Terra, não podes aliviar o meu fardo? Queria sentir tua presença a meu lado com o olor das rosas...
A porta se abre. Vozes. Mais um dia de visitas. Até quando...