Thursday, August 31, 2006


Onírica
(Luz... Porto)
Há de chegar o dia
Em que o Embuçado de minha insônia virá,
Apeará de seu corcel negro
E, cortesmente, me convidará a dançar.
Há de haver o dia
Em que o mastim hidrófobo
Que cerca a entrada da casa térrea
Será apenas um cão sedento a me abanar o rabo.
Há de vir o dia
Em que a família que me abandona ao crepúsculo
Tornará à casa paterna
E me levará a um piquenique à beira-mar.
Há de ser o dia
Em que as trevas espessas de meu pesadelo
Serão iluminadas pelo clarão alaranjado
De um arrebol arrebatador e ameno.
Há de se fazer o dia
Em que estarei descalça e só de pijamas na rua.
E disto não me envergonharei
Nem o asfalto, nem as pedras machucarão meus pés.
Há de se aproximar o dia
Em que eu e minha metade negra
Nos fundiremos em uma só mulher-pássaro
E voaremos em meio à queda do balaústre.
Há de se construir o dia
Em que tua falta e tua distância já não me doerão tanto
Pois ao acordar sobressaltada no meio da noite
Verei a mim mesma velando por meu sono a meu lado.

Wednesday, August 30, 2006


Nárnia
(Luz... Porto)
Depois que você se foi
Nada ficou igual - e por que ficaria?
Rasgaram-se as persianas de alto a baixo,
Nelas só restou a inicial de seu nome.
Trincaram-se os cristais
Ante meu grito emudecido na garganta.
Murcharam as rosas
Cuidadosamente dispostas no Murano antigo.
Quebraram-se os vidros de todas as janelas
E o bafo fétido da morte
Entranhou-se no apartamento.
Eletrodomésticos fizeram-se selvagens,
Espatifando-se contra os azulejos da cozinha
E um curto-circuito lesou-me os neurônios.
Vieram as estações. Pontuais.
Uma após a outra.
As traças, os cupins,
Os vermes continuaram a roer
Os móveis, as portas, os tacos:
Tudo permaneceu congelado
Pela eternidade adentro.



Recordações da Casa Paterna
(Luz... Porto)
Os ratos roeram o forro da velha poltrona,
Os cupins moeram grão a grão as gavetas do guarda-roupa,
As traças puíram os lençóis matrimoniais
Até então intocados,
A chuva corroeu a fiação semi-centenária,
A osteoporose traçou prematura o esqueleto,
O vento espatifou o barro do telhado,
As raízes floridas abalaram as sapatas de parco concreto,
A ferrugem mastigou o encanamento de ferro,
As pedras retiveram a umidade nas paredes,
A marreta constante e voraz destruiu a escada
Onde o amor distraído já fizera visita,
A poeira contaminou olhos e pulmões,
Os ladrilhos consolidaram labirintos sem Minotauro,
Os portões altos delimitaram o espaço de lazer,
As lajes abafaram a ventilação,
Cimento cinza enterrou viva a grama verde,
As árvores foram arrancadas,
Os galhos, quebrados,
As folhas, pisoteadas,
O sol...
O sol, para sempre exilado, jamais brilhou novamente.


Catalepsia
(Luz... Porto)
"It's too late!"
É o que dizia o Coelho Branco a Alice.
"It's too late, baby!"
É o refrão que tocava nas rádios
Quando éramos crianças.
Eu me entristecia sem saber a razão.
Agora, que o outono
Se aproxima da minha vida,
Quando minhas folhas tomam-se
De um vermelho quase cobre, quase bronze,
Último fulgor prenunciando
O inverno do qual não escaparei,
Tais palavras batem em meu peito
Como um sino fúnebre
Chamando para o meu enterro.
"Never more!" "Never more!"
Diz o corvo de Poe a me visitar à noite.
Nada sou além de um de seus personagens,
Talvez o da Casa de Usher,
O tal cataléptico, claustrofóbico.
O musgo, a hera tomam
Os muros que crescem à minha volta e revelia
Erigindo minha torre de marfim
Da qual não sairei viva,
Dentro da qual estou condenada
A ver o mundo, a vida que nunca tive,
Passarem diante de meus olhos
Enquanto gasto a eternidade qual zumbi errante.


(IN) SENSATEZ
(Luz... Porto)
Meus olhos, faróis apagados,
Reverberam no silêncio triste
Das madrugadas cinzentas.
Meus tímpanos, taróis perfurados,
Calaram-se na balbúrdia
Do trio elétrico carnavalesco.
Minha língua, serpente pisoteada,
Não percebe mais a maciez
Ou a aspereza da pele amada.
Minha pele, couro curtido,
Cega-se ante à claridade
Deste sol pulsante de meio-dia.
Minhas narinas, com pelos totalmente imóveis,
Não percebem a doçura nem o travo
Dessa paixão desatinada.
Meus neurônios, peixes nadando no seco,
Mal reconhecem o olor das rosas
E a putrefação de meus esqueletos escondidos.
Meus pés, barro esmagado,
Só me levam ao delírio,
À alucinação e à demência.


A Gosto
(Luz... Porto)
Era agosto, eu me lembro.
O céu azul com um ou outro
Fiapo de nuvem a fazer contraste.
Árvores carregadas de flores
Rosa, fúcsia, vermelhas, amarelas.
Borboletas passeando,
Cumprimentando pássaros sem rumo
Urubus fazendo Vs no firmamento.
Era agosto e eu esperava ansiosa
Pelo meu aniversário,
Aquele dia único, singular, especial,
Em que todo o Universo
Conspiraria a meu favor.
Haveria festa, bolo,
Brigadeiro, espetinho,
Sanduíches, brinquedos, visitas,
Gato-mia, pique-esconde, bandeirinha.
Era agosto e num leito de hospital,
Abandonado no insondável mundo do coma,
Jazia meu avô, por quem tanto rezava.
Em um hospital do outro lado do mundo,
Em um barro distante por mim nunca visitado,
Deitava-se seu corpo flácido, sem reações.
Minha avó secava e não chorava:
Murchava por dentro.
Minhas irmãs se revezavam nos cuidados.
Meu pai não dormia em casa,
Só ao lado do sogro, velando-o
À espera de um milagre.
Era agosto e, diferente de Casemiro,
Não poderia nunca ter saudades
Da aurora da minha vida
Pois, mesmo sem chuvas nem trovões,
O sol não brilhou na manhã dos meus oito anos.
Às seis despertou-me a visita fatídica
Com a notícia irremediável.
Não houve festa naquele dia.
Tampouco lágrimas consegui derramar.
Não entendia o que era a morte
(Não a entendo até hoje).
Só chorei meses depois
Quando minha novela favorita acabou.
Não houve festa
E desde aquele dia
Visto luto fechado a cada aniversário meu.
As rosas que porventura recebo
São apenas coroas fúnebres
A ornamentarem antecipadamente minhas exéquias.