Friday, November 20, 2015

SOBRE CAFÉ SEM CIGARROS

(Luz... Porto)


Nunca fui de ligar para coisas de casa. Brincava de boneca, é claro e sonhava em ter uma casinha como a que meu avô fez para minha irmã, Bernadette, com papel de parede, janelas que abriam com puxadores e portas com dobradiças. O sonho maior seria o de brincar com a que ele fizera para mamãe em um Natal perdido na década de 30. Até privada com descarga tinha! A que recebi, neta mais nova, foi pequenininha. Não cabiam bonecas nela, só umas feinhas, usadas em decoração de bolos. Infelizmente mamãe acabou por guardá-las em local inadequado e lá se foram as duas que restaram, bem como o meu patinho de pau. Sim, as crianças normalmente tinham um cavalinho de pau, mas meu avô optou por um pato. Mesmo apreciando cavalos e tendo um certo fascínio por eles, o avô deve ter intuído o meu gosto por cisnes e minha identificação com contos de fada - que nem ainda havia lido - envolvendo gansos e cisnes. Bem, fomos felizes e o brinquedo, destinado a crianças pequenas, foi usado até uns dez ou onze anos. Era siplesmente irresistível.
No âmbito de decoração, irresistível para mim era porcelana. Como eu apreciava a louça fina, os desenhos... Minha "quase" avó, Maria Alves Velloso, me dera ainda pequena, um jogo com um prato fundo, um prato raso, um prato de sobremesa e uma xícara de chá (ela também sabia que eu haveria de me apaixonar por exótica bebida). O jogo ficava guardado em uma caixa dentro da cristaleira de mamãe.
A cristaleira.... Quanta coisa linda. Quer dizer, quanto resto de coisa linda. Caçula, nasci quando meus pais já tinham completado 15 anos de casados. Mudanças, empregadas, três filhas... Os presentes de casamento ficaram desfalcados. Dos conjuntos de chá, lembro-me de um. Xícaras pequenas, com pés dourados, pires com as bordas douradas onduladas. Uma faixa azul mais larga e flores amarelas, cor-de-rosa e azuis contrastando com o fundo branco. Sobraram o bule de café, a chaleira, a mantegueira, que logo perdeu a tampa. Lembro-me de um açucareiro, provavelmente partido em alguma lavagem. E dos pratos de sobremesa. Creio ter havido um prato para bolos, mas não sobreviveu a ponto de me conhecer.
Essas belezas eram religiosamente retiradas e usadas uma vez por mês, quando minhas tias-avós, Zezé e Cassinha, atravessavam a baía de barca para receberem a pensão dos falecidos maridos. Sempre nos visitavam. Compravam pães bem quentes, bolo de laranja, biscoitos sortidos, para o lanche. A empregada fazia um rocambole apreciado por todas - meu pai ainda trabalhava - e acabava sendo uma reunião de mulheres. Ou de mulheres, moças e menina.
Conversava-se muito, falava-se muito da vida alheia (que vergonha). As Marques, como foram conhecidas até a morte as filhas dos bisavós Acácio e Altina, tinham uma língua ferina e eram muito críticas, o que nunca as impediu de ajudarem familiares em apuros financeiros decorrentes de doença, à exceção de um, que é outra história. Os "trabalhos" tinham início na presença das tias, às vezes vinha mais uma ou outra, de minha mãe e da minha pessoinha que, fingindo brincar ficava de olhos e ouvidos bem abertos. Em seguida aparecia alguma irmã que estivesse em casa e, por último, qual rainha (tinha o porte, a pele e os gestos, tudo ocultado por sob o peignoir simples que usava em casa), minha avó com minha tia a tiracolo.
Algum presente para minha tia, um agrado à minha avó, a conversa ficava mais difícil por conta da surdez de minha avó e, por fim, a mesa coberta com toalha da Ilha da Madeira, igualmente perdida.
Comia-se muito. Minha avó, pouco. Os hábitos quase monásticos que adotava em sua casa estendiam-se à mesa. O lanche rápido nesses dias era substituído por um mais longo. Não menos frugal para ela que se permitia apenas uma fatia fina de rocambole e um pedaço pequeno de pão. Minha tia seguiria o mesmo caminho, mas era gulosa e a pressão das irmãs e da minha mãe era grande. Ela comia mais.
A mim não encantava tanto o cardápio. Nunca fui muito de doces. Preferia que trouxessem coisas salgadas. Não se servia chá, o que eu pedia em separado, enquanto todas se fartavam com um café fortíssimo e estalando de quente. Lá pelas cinco e meia, chamava-se um táxi e elas voltavam para casa.
Com o tempo, mamãe, ou talvez a empregada, foi se descuidando mais e passou a não ver a necessidade de se lavar a louça, já que ela estava guardada e não se abria a cristaleira com frequência. Eu tinha ataques e era chamada de fresca, para não repetir o que de fato ouvia. A cristaleira fora presente de casamento dos padrinhos, primos da minha mãe. Mobiliaram o quarto do casal e a sala. Móveis da Gelli, quando a Gelli era em Petrópolis e trabalhava com madeira de verdade. A madeira exalava um cheiro peculiar que acabava afetando também o sabor. Via-me obrigada a lavar minha xícara, meus pratos. Lavava com medo de quebrar aquela louça fina que nem era tão fina assim, no fim das contas. E tinha de marcar o lugar onde me sentaria. Malgrado o meu cuidado, a louça ia se esfacelando e minha irmã comprou um moderno. Acredito que ainda haja um ou outro exemplar perdido no móvel.
As tias se foram todas, assim como os tios. Com certeza em algum lugar no além eles se reúnem à tardinha para tomarem o seu café preto enquanto tecem comentários sobre nós, os que ficamos.


Thursday, November 19, 2015

Chorei
(Luz... Porto)

Chorei porque juro, juro que houve um tempo em que me acreditava e provavelmente me comportava como a Musa de um eu-lírico tão poético, digno de entoar esse hino de amor a alguém tão inconspícua como eu.
Juro que li essas palavras nunca ditas no fundo de teus olhos negros de viajante perdido nessas paragens.
Juro que por uma fração de segundos minhas unhas carmim se alegraram e braceletes, colares, brincos, cabelos ao vento entoaram algum canto ancestral de sereias e senti que me seguias.
Imantada pelo meu perfume, tua sombra me espreitava por vielas, por esquinas. Cobria-me de flores para não ser vista. Em vão. Talvez o olor, quiçá a combinação de cores, algo em mim  fazia com que soubesses por onde eu estava a passar.
Havia música, sim. Havia a música das esferas, a música do silêncio, ou a música do mar que se ouve em conchas. Então dois sorrisos largos, dentes brilhando e o adeus final a se arrastar pelos anos.



CAFÉ COADO
( Luz... Porto)


No tempo em que minha avó preparava o seu café no bule de ágata azul, eu talvez fosse feliz e não soubesse. Ela estava viva, ia à Igreja e comungava todos os dias. Talvez comungasse por nossos pecados ou por pecados futuros. Da humanidade mesmo. Ia à missa em jejum, de braço dado com a minha tia. A catarata ainda não lhe embaçava o olhar agudo de quem nunca precisou de óculos.
Meu pai também estava vivo e saía todos os dias antes das seis para trabalhar. Corrijo. A partir da minha quinta série, ele saía um pouco mais tarde para me acordar e me servir o desjejum. Chá, pão e manteiga. Às seis e um quarto, lá se ia ele ladeira abaixo pegar o ônibus, a barca para só retornar doze horas depois, trazendo sempre o jornal do dia e algum mimo em forma de leitura para mim, fosse um gibi, fosse alguma coleção que ele julgasse importante.
O bule talvez tenha sido o mesmo durante minha infância e adolescência. Se não o fora, não pode ter havido mais do que três. Minha avó, sem que eu pudesse suspeitar ou intuir, praticava o desapego e a conservação. Mesmo com as coisas do meu avô. Com que surpresa e ciúme deparei-me com a obra completa de Proust, com a assinatura "Carlos Pimenta Velloso" na casa de meu tio, irmão dela! Interrogado, o tio disse que fora presente dela enquanto o marido ainda estava vivo.
Naquela casa ampla, de poucos móveis, poucos objetos, a maioria dos quais religiosos, não havia espaço para o excesso. Os armários de madeira lustrosa nunca estavam cheios, muito menos a cômoda. No armário do banheiro, o essencial. Duas escovas de dente, fio dental, palito dental, um pote com algodão, um vidro de iodo e um tubo de sénophile. Ocasionalmente, um outro de omcilon.
Fazendo conjunto com o bule, duas canequinhas de café e duas grandes para leite. Havia outras duas panelinhas de ágata também. Tudo azul. De um azul intenso, forte, sem ser o marinho.
Perguntava-me o porquê de o material se chamar ágata. Era um nome próprio e eu supunha que fosse uma homenagem à minha tataravó Agathe. Sei que, com ou sem homenagem, nem as panelas, tampouco as canecas, duravam na minha casa. Meu pai reclamava:"São essas empregadas que sua mãe arranja. Ela não sabe dar ordens."
De fato, na cozinha de minha avó não entravam bombril nem detergente. Apenas esponja comum e sabão de coco. E tudo brilhava e cheirava à limpeza. O café, que eu jamais provara, nunca tomei café, era coado em um artefato de madeira feito por meu avô, uma espécie de tripé. Pintado de azul. (Talvez a insistência no azul celeste fosse uma referência à faixa da Virgem, capaz de interceder por eles naquela vida de que não se queixavam, mas que era tão sofrida, por várias razões.) Nele minha avó encaixava o coador de pano feito e bordado por ela. Não sou fã do cheiro, mas o café da minha avó, servido tarde, após a missa e a comunhão, era o marco de que a manhã chegara. Por sinal, minhas manhãs sempre chegaram tarde.
Então a vida envelheceu, crescemos, vieram doenças e obstáculos. Um fêmur quebrado limitou-a e as missas já não eram diárias. A comida não era mais feita por ela, mas pela empregada de mamãe que limpava as panelas, amassando-as e riscando-lhes a superfície com a esponja de aço. Foi-se o bule, foram-se as canecas. Foi-se a avó. Foi-se o pai. Restou eu. Por vezes pego-me a imaginar meu pai me chamando e o café sendo passado no coador de pano bordado. Talvez assim chegassem novamente as manhãs...