Sunday, November 22, 2015

O FIO DA MEADA

(Luz... Porto)




Minha mãe passava as tardes no jardim. A maior parte delas. Sentava-se em uma cadeira à sombra das trepadeiras floridas do caramanchão. Geralmente lia um bom livro. Depois fechava os olhos e sorria. Creio que sonhasse. Não sei se com o enredo, com aventuras ou com bordados. Ah... Minha mãe era uma bordadeira de mão cheia! Produzia peças lindas a partir de desenhos que ela mesma criava. Às vezes, acho que por desafio, bordava sem desenho algum. E dava certo!
Por volta das três, ela tomava de sua bolsa, de onde tirava bastidores, tecidos, linhas, tesouras e agulhas. Uma tarde, percebendo que eu a observava, chamou-me. "Já é hora de você aprender a bordar, minha filha". "Eu? Não tenho jeito com as mãos. Só me agrada o piano", resmunguei. "Não seja boba. É fácil. Eu te ensino."
E pus-me a enfiar a linha na agulha. Qual! Mais fácil uma sonata! Daí passamos a treinar os pontos. Uma complicação. Vivia me machucando. Mamãe não usava dedal. Era contra. "Precisamos nos familiarizar com a frieza e a rigidez da agulha e com a maciez da linha. São prolongamentos de nossas mãos". As minhas só se prolongavam no marfim e no ébano. Sobretudo Bach e Chopin. Minha mãe insistia. Era difícil recusar qualquer coisa à minha mãe. Seu jeito sereno, sua delicadeza, seu carinho... Então prossegui.
Depois de treinar muito vários pontos, minha primeira tarefa. Bordar um lenço de cambraia. Flores amarelas, era o que mamãe riscara, Nervosa, eu me desconcentro e me firo. O sangue mancha o tecido imaculada. Atirando o trabalho ao lado, corro a me lavar em casa. "Não sei fazer nada direito. Não te disse? Nunca mais bordo de novo", solucei.
Pacientemente minha mãe secou minhas mão, pôs água oxigenada na "ferida" e foi me conduzindo de volta ao jardim. "E agora? Não tem mais jeito! Não dá para lavar". "Às vezes a vida traça outros traços sobre o que traçamos. Não vê seu pai? Desempregado, achou logo nova colocação. Mas tem de passar esses meses fora. Precisamos nos ocupar e estar alegres e bem-dispostas para a sua volta."
Com olhar de especialista, minha mãe foi adaptando o desenho enquanto me lembrava da história da Branca de Neve e me contava o mito de Filomela que, tendo a língua cortada por seu cunhado para não poder revelar à irmã a desgraça a que este a submetera, descobrira no bordado a forma de contar sua história. Ao final, um deus piedoso a transformara em andorinha.
Passou-me os bastidores. As flores deram lugar a um pôr-de-sol à beira-mar. Ao longe, um pequeno pássaro. "Filomela?". Minha mãe aquiesceu. Já com o rosto seco, mas ainda trêmula por dentro, pus-me a bordar. Por dias. Minha mãe orientava "assim o ponto fica solto demais, desse jeito fica apertado". E repetia "a boa bordadeira a gente conhece pelo avesso" e me punha a consertar a me esmerar. Pronto o lenço, dei-o a ela.
Não me tornei uma bordadeira. Tampouco uma pianista, como eu quisera. Toco o meu piano até hoje, em casa, em algumas festas. Bordo o mínimo necessária, embora tenha bordado todo o meu enxoval com minha mãe. Milhares de monogramas. Toalhas de mesa, panos de prato, colchas. Depois, os enxovais de meus filhos. Um predominando em rosa, o outro, em azul.
Com mais idade, minha mãe não arrefecia. Fazia enxovais para pobres. Para o Lar de Frei Luís. Para bazares. Lembro o seu perfil um tanto envelhecido. O nariz ficara ligeiramente adunco e o cabelo, grisalho apenas em uma grande mecha, dava-lhe o ar de sacerdotisa. Ela se ria e me falava das Parcas. "Toda mulher deve saber bordar para ter o mínimo de controle sobre o fio tênue da nossa existência. A vida nos borda e nós a bordamos. As tramas se entrelaçam. Um dia, o Criador as desmancha para bordar novas histórias"
É... Como sempre minha mãe estava certa. Átropos, com sua tesoura impiedosa, levou-a cedo demais. Para uma filha como eu, sempre seria cedo demais, a despeito de seus mais de oitenta. Parada cardíaca durante o sono. Morreu como um passarinho. Quando, mais calma, chamei filha e vizinha para ajudar a vesti-la, encontro na mão firmemente cerrada um pôr-do-sol com uma andorinha. Não, o Criador não nos abandonara....