Monday, June 30, 2014

SEMPRE A SEU LADO
(Luz... Porto)
A Marisa Dea



     "Mente pra mim", "Sussurra no meu ouvido", disse ele enquanto faziam amor. Ela o olhou, a princípio intrigada, e percebeu o que ele queria. "Eu te amo", disse. E ele gozou, desfazendo-se em urros de prazer.
     "Engraçado", ela pensou. "Tão agressivo, mas nessas horas age feito um cordeirinho". Adormeceram. ele, exausto, ela, pensando na 'mentira'. Será que de fato faltara com a verdade? Não sentia por ele o que sentira pelos grandes amores de sua vida, é verdade. Mas não seria aquilo também uma forma de amor? Tantos anos de convivência, brigas, discussões, ameaças... Ele sempre voltava. Ela, por comodidade, ou não, aceitava.
     Conheceram-se por acaso. Em uma fila de banco. Ele, aparentando uma solicitude que não tinha, encantara-se pela figura vivaz e alegre que trocava receitas na fila, enquanto cedia a vez a uma mãe nervosa por buscar a filha no colégio.
     Depois foram encontros casuais no mercado, na livraria e em um cinema. Tinham ido sozinhos. Acabaram assistindo juntos à sessão. Conversaram e seguiram para um bar. Terminaram a noite falando de música e política. Trocaram telefones. O beijo, há muito anunciado, chegou. E, depois, a primeira noite de amor, a que se seguiram muitas.
     Ela mencionava um noivo.Colega de trabalho, a serviço no Canadá. Ele nunca comprou esse discurso. Achava que era invenção dela. Talvez fosse. Morava sozinha, poucos a procuravam, procurava por poucos. Aparentemente não tinha mais família.
     O gênio dominador e um tanto sádico foi se revelando aos poucos. Na crítica a um técnico de computador que não fora consertá-lo porque o filho, portador de necessidades especiais, caíra de uma escada. "E eu com isso?", dissera, para espanto dela. Profissional é profissional.
     Nas inúmeras incursões que faziam a museus, exposições, Jardim Botânico, a tal da solicitude desaparecera. Sempre havia algo a ser criticado. A temperatura do lugar, o atendimento aos clientes, o público presente. "Há pessoas que só se sentem bem reclamando. Deve ser o caso dele", pensava com seus botões.
     Ela não dava bola, não levava a sério e ria do seu bem mau-humorado. Ele se irritava com isso. Achava que ela não era uma mulher séria. Achava que os homens eram mais inteligentes, capazes de elucubrações estratégicas e de atitudes realmente nobres. O bom humor dela passava por futilidade. Soava-lhe leviana.
     "Você não vai levantar?", perguntou ele. "Está um sol lindo. Ótimo dia para um passeio à Ilha Fiscal". Ela tentou sair da cama, mas uma dor lancinante manteve-a presa ao leito. Ele se queixou. "Frescura!". Mas não era. Pensou em ir ao hospital mas ele não a acompanharia. Tinha verdadeira fobia a nosocômios. No dia seguinte a situação só piorou. Acabaram indo. Ela estava com artrose e bico de papagaio em várias partes da coluna. E, no momento, estava em crise.
     Buscaria por vários tratamentos, dos tradicionais aos alternativos, mas, naquela situação, a cortisona se fazia necessária. Ele precisou se ausentar por alguns dias. Cuidar da mãe, que sempre descrevera como um estorvo. Quando voltou, mal saía do elevador, a porta dela se abre e ele ouve: "Obrigada, Márcio. Desculpa o incômodo". E uma voz masculina "Até domingo. Qualquer coisa estou no celular. Me liga". E vê um jovem esbelto e bem apessoado sair do apartamento.
     Não adiantou nada ela explicar que o rapaz viera aplicar-lhe a tal da injeção. Quando ele se deu conta de que era aplicada nos glúteos, o ciúme toldou-lhe a visão e o bom senso. Chamou-a de prostituta, de messalina, disse que ela não valia nada, que era suja. Confessou que tivera outras mulheres enquanto estavam juntos, que nas vezes em que ela não estava disponível, se encontrava com outras que conhecera em redes sociais e declarou que não faltavam, inclusive, mulheres dispostas a bancá-lo. Por fim berrou aos quatro ventos que gostaria de vê-la morta.
     Assustada, magoada e com raiva, mas, sobretudo, muito cansada, ela achou por bem não discutir. Fechou o quarto, deitou-se e foi ver televisão. Melhor não pensar naquilo. Embora na mesma casa, passaram o dia separados. A noite também. Na manhã seguinte, ele chamou-a na sala para mais uma das intermináveis discussões de relação. Pediu desculpas. Disse que tinha exagerado. Perdera a cabeça e falara demais. Gostava dela, eram amigos. Amigos e amantes. Confessou que ele, sempre contrário ao casamento enquanto instituição, com ela se casaria, que teria filhos com ela. Eles se davam bem e coisa e tal. Foram tantas as desculpas, os pedidos, as súplicas, que acabaram se beijando. E, de beijo em beijo, foram para a cama. Nesse dia ele pediu de novo e nesse dia ela mentiu. O desejo falava alto, talvez temperado pela raiva, tempero perigoso, como tantos outros que nos passam despercebidos, e a trepada acabou sendo ótima.
     Dali por diante ele se mostrou mais atencioso, menos irritado. Trazia-lhe flores. Rosas, que ela adorava. Trazia-lhe vasos com pimenta, margaridas, violetas e um bonsai de espirradeira, planta que ela não conhecia. Passou a cozinhar para ela, a ajudar nas tarefas de casa. Todas as noites, levava-lhe um chazinho relaxante que ela tomava como remédio. Fazia-lhe companhia, buscava agradá-la. Usou sua licença-prêmio para estar com ela. Ela relevou, reconheceu-lhe os esforços, deu uma nova chance. Chegou até a pensar que, no fim das contas, a mentira não era tão mentirosa assim...
     Ela, limitada e com dores, licenciou-se do trabalho. Aproveitando-se disso, ele sugeriu uma temporada em sua casinha no interior. Comprara-a quando da sua aprovação em concurso público, arduamente disputado. Era perfeita. Pequena, aconchegante, com jardim, riacho, árvores frutíferas. Um pequeno gazebo rodeado por oleandros dava um toque pitoresco ao local. Além de tudo, isolado... Vizinhos a quilômetros dali.
     Não foi difícil convencê-la a passar uns dias com ele, em uma espécie de lua-de-mel antecipada. O lugar era bucólico e acolhedor. Comida frugal. Quase tudo da propriedade. Muitos legumes, frutas, grãos, peixes do rio. E chá, muito chá, como ambos gostavam... Parecia que eram Adão e Eva retransportados ao Jardim do Éden. 
     Ela não se deu conta, porém, da Árvore do Conhecimento. Ignorou a serpente. Curiosamente, os sintomas aliviados com a cortisona, voltaram e de outra forma. Além das dores nas articulações e nas costas, dores abdominais, vertigem, náuseas, sonolência. E ele se desfazendo em cuidados. Não durou muito. a pulsação foi se acelerando, o peito, oprimido, respirar tornou-se difícil. Ela partiu em noite de Lua Nova.       
     Com todo o esmero, como se preparasse uma noiva ao altar, ele a despiu lentamente. Banhou o corpo da amada, perfumou-o com óleos raros. Vestiu-lhe as roupas mais elegantes. Depositou-a em um caixão magnificamente talhado em madeira de lei e forrado com veludo vermelho. Acomodou-a com extrema delicadeza e beijou-lhe a testa.      
     Enterrou-a em lugar de destaque no jardim, não muito longe da pontezinha que cruzava o riacho onde eles haviam enlaçado e desenlaçado as mãos. Logo depois plantou belas flores do campo por cima. Gostava de enfeitar a sala de estar e o seu quarto com elas. "Minha querida", dizia todas as noites, beijando cada pétala ante de adormecer, "não te disse que estaria sempre a seu lado?".