Saturday, November 22, 2014

INTERSTÍCIOS


(Luz... Porto)





Entre o que sinto e o cinto que me aperta,
Garganta rouca, arranhada, ferida.
Há pouco ar e desejo de viver.
Há sempre o medo do desconhecido.

Meu coração, quase nada o desperta.
Semi-morto só faz chorar, sofrer.

Entre o que me cinge e o que me liberta
Pulsa só a a vida por uma réstia
Frágil, tênue, trêmula, um fiapo.

Não me deixaram nenhuma porta aberta.
Eu, que morro logo desta moléstia,
Do que fui só restará reles trapo:

Existência vazia, vã inútil...
Quem sabe terei sido apenas fútil?

INTERMEZZO


(Luz... Porto)





Entre mim e meu amor
Corre um riacho, um rio, um mar.
Oceano ancestral onde naufragam
Navios, caravelas, veleiros.
Intransponível oceano amargo...
Recordações, ossadas, quilhas.
Nem sereias têm mais voz,
Nem marinheiros se perdem
Em meio a arrecifes e corais.
Entre meu amor e eu
Não se celebraram votos de Himeneu.
A terra fendeu-se,
Formaram-se abismos,
Ravinas, fiordes.
Vieram aves de rapina.
Não sobrou carniça alguma,
Nem árida vegetação para sombra.
De nós dois só restou
Um vazio que me assombra.

CATPEOPLE


(Luz... Porto)





A moça -pantera percorria
De cabo a rabo a velha cidade
Acompanhada, ora por um,
Acompanhada, ora por outro.

A moça-pantera, mera quimera
De sonhos de outra realidade,
Não vivia em mundo algum.

Seu parco coração, pouco douto,
Sobrevivia calado e sem calma.
Amigos? Amantes? Qual! Nenhum.

Pois aquilo que ninguém sabia,
Que ninguém poderia supor,
Que a calcular poucos se atreviam

Era o tamanho da solidão
A lhe tomar tão felina alma,
Preenchendo-a grão por grão.

O nó no peito nada podia transpor.
Talvez houvesse alguém, uma pessoa...
Na verdade, de fato, só há uma
Mas sua existência para ele é inócua.

Fechava então os olhos com pudor
Para que não a vissem na claridade
E se trancava nua em sua escuridão.

ARCANJO


(Luz... Porto)



Estava a dormir quando uma voz antiga, talvez da minha mãe, talvez da babá que eu tive sem ter - e não a amei menos por isso - veio me contar uma história. Na adolescência, li Herman Hesse. O Lobo da Estepe, Demian, Sidarta. Todos na biblioteca da escola, sócia cativa que eu era. Entrei para a faculdade e comprei, na primeira Feira de Livros a que fui, um livro de contos dele. Foge-me à memória o título, nas brumas do esquecimento.
Essa voz feminina e materna me (re)contava a história de Gabriel (não era esse o nome, mas o era no meu sonho). Gabriel, o Arcanjo da Anunciação, no conto, era o único filho de um casal que já havia perdido a esperança de ter filhos. Nascido quase no inverno da mãe, Gabriel foi uma criança muito amada, muito querida. Lindo que era, a todos agradava e seduzia com seus belos olhos azuis como piscinas naturais.
Na casa em que a família habitava, havia um jardim japonês, habilidosamente construído. No lugar de pedras naturais, havia muretas de azulejos variando em tons de azul, mesclados ao branco. Por sobre as muretas, em algumas pequenas partes, flores lindas e raras vicejavam. Entre uma mureta e outra, plantas aquáticas misturavam-se harmoniosamente com pedras de tamanhos e formatos variados.
Gabriel adorava passear pelo jardim, o que exigia exímio domínio corporal. Munido de um longo bambu, ele se equilibrava pelas muretas e admirava cada uma das plantas e o piso do lago profundo que formava um mosaico com partes das histórias de seus antepassados.
Não se sabe se por conta da idade avançada dos genitores, ou se por conta das distorções de imagens provocadas pelos salgueiros à beira do lago a criarem miríades de projeções e ilusões, como em um caleidoscópio, o fato é que o menino nasceu com um problema sério.
A princípio, era imperceptível. Crianças são egocêntricas. Depois se atribuiu o fenômeno ao excesso de zelo e mimo dos pais. O fato é: Gabriel não conseguia amar. Era uma incapacidade, como uma cegueira, uma surdez, uma paralisia. Era apegado à mãe, à ama. Brincava com as crianças. Mas as piscinas naturais em seus olhos eram gélidas como dois fiordes noruegueses.
Teve animais de estimação. Não os maltratava. Nunca. Mas todos, pessoas e bichos, só lhe interessavam à medida em que pudessem lhe dar prazer. Depois eram polidamente descartadas. Polido. Sim. Era um rapaz de esmerada educação. Não ofendia a ninguém. Apenas não amava.
A morte da mãe fez com que chorasse e ficasse profundamente sentido. Mais pelo incômodo da ausência do que pelo sentimento em si. Ninguém notou, salvo uma vizinha que sempre fora apaixonada por ele.
Músico e escritor, transportou a experiência da perda para acordes e versos. E esse talento natural para as artes, essa sensibilidade artística, que, correspondia antes à precisão de um técnico em ciências exatas,que a uma sensibilidade propriamente dita, abriu-lhe caminhos. Foi chamado a viajar, a fazer novos cursos. Deixou um pai, viúvo e abalado e dezenas de moças tristonhas.
À estação de trem, foi abordado por uma velha cigana húngara. Rechaçou-a: não gostava do que não fosse belo. Ela insistiu, tomou-lhe a mão. As linhas vincadas do rosto mudaram o percurso, os olhos se arregalaram e ela sussurrou algo intraduzível. Soltando a mão do rapaz, ela disse: "Tenho muita, muita pena de você." Espantado com a ousadia, nunca ninguém se dirigira a ele dessa forma, ficou sem palavras. Ela continuou:"Você carrega uma bênção e uma maldição terrível. A benção é a de ser amado por todos; a maldição é a de não saber amar. Aprenda enquanto é tempo, meu filho. Seus dias serão terríveis".
O trem chegou, ele deu-lhe um anel de ouro, como se com o gesto pudesse apagar as palavras, e embarcou, ressabiado. Já no trem, veio uma moça, e outra e outra. Esqueceu. Sua memória funcionava assim: descartava o feio, o sujo, o incômodo.
Os anos se passaram. Percorreu a Europa inteira. Fez sucesso.Como músico, como escritor. Teve várias namoradas,amantes. Viveu curtos períodos com algumas moças, mas nunca se casou. Temia a rotina, o enfado, a repetição. Não sabia que já nascera com o enfado no coração.
Perdeu o pai. Não foi ao velório, nem ao enterro. Estava em turnê. O Destino apronta das suas. A vizinha, aquela, estava de visita na Alemanha, poucos dias após o sepultamento. E eles se encontraram por acaso. Ela se tornara uma bela mulher. Olhos oblíquos que, por uma fração de segundos, fizeram com que pensasse na cigana da estação. Conversaram muito. Viraram a noite bebendo, comendo, conversando. Sofia, a moça, tentou consolá-lo da perda, mas olhando-o melhor, reconheceu os fiordes frios da Noruega. Afundou-se mais no casaco, bebeu mais um gole de brandy e mudou de assunto.
Gabriel interessara-se por Sofia. Ela era inteligente, culta, atuava. Uma ótima plateia para o músico e escritor. Não foi difícil envolver a moça, que já nutria um sentimento por ele, ainda que seu coração feminino ficasse de pé atrás. Sofia cedeu aos encantos. Descobriu um amante a quem queria se entregar, a quem dar prazer era uma arte. Mas isso a cansava. Não poderia haver reciprocidade.
Ao contrário de todas as outras, foi Sofia que, em uma manhã de inverno, dois anos depois, partiu com um bilhete lacônico. Ele ficou magoadíssimo. Escreveu mais um livro, premiado, e compôs uma sinfonia.Esse nome ficou para trás, perdido em uma espécie de catálogo telefônico só de nomes e imagens que iam-se apagando, uma a uma.
Um pouco mais velho, descobriu-se doente. Teve enfermeiras dedicadas que o entediavam. Debelada a doença que muito o fez sofrer, olhou-se no espelho e não se reconheceu. A beleza havia esmaecido. A velhice parecia estar a um passo da sua porta. Sentiu-se fraco, dependente. E, pela primeira vez, sozinho. Não queria companhia. Passou a se ver como um fracassado, um inútil.
Teve notícias de um "nome" do catálogo. Sofia. A mesma atriz, com quem vivera quase dois anos e que, sentindo-lhe o desinteresse e a frieza, rompera bruscamente sem dar satisfações, mudara-se para a América. E casara-se lá. O que não lhe fora dito era que a moça estava grávida de um filho que ele não assumiria. "Não estou pronto para ser pai" seria a explicação de sempre. E que fora com ela para além do Oceano, sendo criado por outro homem como pai.
Quando Franz, seu amigo de infância, revelou-lhe isso, as bolsas sob os olhos foram suavizadas e ele exclamou:"Um filho! Para dar continuidade à minha obra. Para dar sentido à minha vida. Por que essa egoísta não me participou? O filho é meu também. Quero conviver com ele, ensiná-lo tudo o que sei". E os fiordes se aqueceram.
O amigo respondeu lacônico:"Sinto muito, Gabriel. Soube há poucos dias através de uma amiga em comum. A criança que você gostaria de receber em casa morreu aos cinco anos. Há quatro anos atrás."
"E como se chamava?"
"Carl, em homenagem a seu pai".
A voz materna que me contava a história comentou que ninguém sabia, que o autor não mencionava a razão. Fosse pela perda do filho a quem talvez, nem conseguisse amar, a não ser enquanto reflexo de si mesmo, fosse pelo medo da velhice, fosse pela fragilidade causada pela doença, o fato é que o exímio equilibrista perdeu o seu prumo.
Abandonou a carreira e foi viver em uma de suas casas no campo. Vendeu a propriedade, ficando apenas com a casinha do caseiro, uma pequena horta e um pedaço de pomar. Foi definhando. Não queria conversar, não queria se mover, não queria viver.
Foi encontrado morto, aos 49 anos de idade, de bruços, à beira do riacho que cortava a propriedade. Ironia: a imagem refletida era a de um belo jovem em lágrimas...

ANIMALIA

(Luz... Porto)



Aquele homem fez meu avesso
Brotar qual fruto de cerne espesso
Nessas noites loucas por aí.
Amantes largados na cidade

Grande, enorme, sem rosto ou claridade.
Criávamos a giz nosso cenário,
Vagando, funambulando ali,
Acolá. Éramos invisíveis.

Soavam sinos no campanário
Celebrando as noites de amor.
Os nossos corpos indivisíveis

Varavam madrugadas insones.
Olho pra trás, vejo corcéis sem nome,
Que, afastados, gemem, sós, sua dor.



ACALANTO

(Luz... Porto)
"A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu" (Chico Buarque. PEDAÇO DE MIM.)


A jovem mãe de triste sina
Viu de seu seio arrancado
O filho que já amava só por
Sabê-lo crescendo dentro de si.
Sem marido, sem pai, só tinha a ele
Para chamá-lo de seu, para ver crescer.
A jovem mãe, ainda menina,
Mal conhecera cantigas de ninar,
Mas rápido as aprendera
Para o infante embalar.
E lhe falava do mar, que mal vira,
Das conchas, ostras e pérolas.
Ensinava-lhe o nome de cada planta.
Contava-lhe das montanhas e vales
E dos homens que os habitavam.
A jovem mãe, num desatino,
Aceitara ser o vaso, a casa onde
A criança havia de se desenvolver:
"A vida depois se resolve, com fé."
Mas a fé não bastou, nem o amor,
Tampouco. A ceifadeira lhe cobrou
Logo aquele de quem mal desfrutara.
Nada pode ser feito, milagre não houve
"Meu Deus, será que os Céus não me ouvem?"
E à noite antes de se recolher
Toma da lira e dedilha versos 
Ao seu menino amado
Embala-lhe o sono,
Ela, que nunca fora embalada...